Rio Grande do Sul

Literatura

Livro resgata documentos produzidos por Luiz Carlos Prestes em seus últimos dez anos

Gustavo Rolim apresenta em Herança, Esperança e Comunismo a história de Prestes e do movimento comunista no Brasil

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Gustavo Rolim organizou dossiê de documentos produzidos por Luiz Carlos Prestes, Anita Leocádia Prestes e o movimento comunista, a partir de 1980 - Reprodução

A Editora Lutas Anticapital publicou recentemente o livro Herança, Esperança e Comunismo: Luiz Carlos Prestes e o movimento Comunista brasileiro – documentos (1980-1994), organizado por Gustavo Rolim.

O livro é um dossiê de documentos produzidos por Luiz Carlos Prestes, Anita Leocádia Prestes e o movimento comunista, a partir de 1980, quando este rompe com o Comitê Central do PCB. Além dos textos, também traz periódicos como o Ecos a Carta de Prestes, o Voz Operária e os primeiros números do Jornal Avançando.

No Prefácio, Lincoln Secco salienta que poucas personalidades no Brasil têm a grandeza política e moral de Luiz Carlos Prestes. “Nele confluem diferentes camadas históricas numa síntese única. Como Julio Mella ele foi um jovem inconformista dos anos 1920. Como Togliatti e Dimitrov, foi um dos símbolos da Revolução Mundial nos anos 1930. Como Dolores Ibárruri, que depois de ser La Pasionaria sobreviveu longos anos ao seu próprio tempo, ele foi muito além do Cavaleiro da Esperança.”

Segundo Gustavo, também foram incluídos dois textos de Florestan Fernandes, pela sua aguda capacidade de sintetizar em linhas gerais as contribuições de Prestes e de suas posições políticas para a história brasileira. Já no primeiro capítulo, Gustavo destaca essa descrição de Florestan: “A vida de Luiz Carlos Prestes atravessa a história do Brasil e marca, dramaticamente, os limites da atividade libertadora, nacionalista e revolucionária. Tornou-se herói antes de afirmar-se como símbolo das possibilidades frustradas e foi a sua lenda que levou os comunistas até ele [...] Inicia-se assim, uma carreira política ímpar. Luiz Carlos Prestes não foi do comunismo à revolução. Saltou da revolução ao comunismo. O que quer dizer que seu ardor revolucionário inquebrantável possuía raízes no solo histórico do nosso país e da América Latina. Ele nasce e se alimenta da recusa firme e decidida de uma ordem de privilégios, de iniquidades e de formas extremas de exploração e opressão, que são repelidas com intransigência [...] À sedução do poder, ele preferiu a luta tenaz e incerta pela criação de uma nova sociedade. É preciso que se reflita sobre isso, hoje e agora [...] É o caminho de todos os grandes revolucionários da América Latina. A recusa da sociedade existente, da ordem de iniquidades e do mandão como lobo de outros homens.” (Fernandes, 1995, pp. 134-135).

Para abrir o livro, Gustavo escolheu Taiguara, um dos artistas mais censurados da Ditadura. A música "Voz do Leste" é uma homenagem ao periódico "Voz Operária" e aos comunistas alinhados a Prestes. Ela integra o álbum lançado em 1983, "Canções de amor e liberdade", extremamente político em toda a sua montagem. “Me pareceu justo fazer este encontro de camaradas na publicação. Além disso, este ano Taiguara completaria 75 anos, e creio cada vez mais que deva ser resgatado como o cancioneiro da nossa futura sociedade.”

Voz do Leste

Sou Voz Operária do Tatuapé
Canto enquanto enfrento o batente co'a mão
Trabalho no ritmo desse Chamamé
Meu pouco Salário faz minha ilusão

Sou voz operária do Tatuapé
Vivo como posso a me deixa o patrão
E enquanto respira dessa chaminé
Meu povo se vira e não vê solução

No teatro da vergonha
aonde a vedade não se diz
Tem quem representa a massa,
quem ri da desgraça
E quem banca o infeliz

Tem até burguês que sonha
que entra em cena e engana a atriz
Tem quem sustenta a trapaça
e depois que fracassa
amordaça o país

Tem quem sustenta a trapaça
E depois que fracassa,
Amordaça o país.

Já meu drama é o da cegonha...
quase morre o meu guri...
Sobra pr'o Leste a fumaça
e a peste ameaça
O ar do Piqueri

Pior que a matança medonha
é o desemprego pra engolir...
Seja no peito ou na raça,
esse teatro devasso
Alguém tem que proibir...

Seja no palco ou na praça
Essas peças sem graça
vão ter que sair.
(sair de cartaz...)

Sou voz operária...

Taiguara, Canções de Amor e Liberdade, Voz do Leste (1983)


Livro Herança, Esperança e Comunismo: Luiz Carlos Prestes e o movimento Comunista brasileiro – documentos (1980-1994) / Divulgação

Confira a íntegra da entrevista.

Brasil de Fato RS – Por que lançar um livro sobre Luiz Carlos Prestes e o movimento comunista brasileiro neste momento em que o comunismo é mais uma vez eleito o inimigo a ser combatido pela extrema-direita?

Gustavo Rolim - Talvez justamente por isso! Acusar o comunismo de ser o maior inimigo do povo brasileiro sempre foi uma tática da extrema-direita brasileira. E precisamos saber afirmar as convicções e os programas que defendemos ainda mais quando se faz essas mistificações tão perigosas. Qualquer projeto político sério e honesto (comunista, socialista, social-democrata, nacionalista...) não pode rebaixar seu programa quando atacado por mentiras, as custas de aumentar ainda mais as mistificações sobre si próprio ou mesmo começar a autocensurar-se (o pior tipo de censura). 

BdFRS – Como surgiu a ideia de escrever este livro?

Gustavo - Na época da universidade me envolvi com o movimento estudantil, participei de organizações e conheci antigos militantes que se alinharam a Luiz Carlos Prestes nos anos 1980. Através deles tomei conhecimento de muitos dos textos apresentados no livro como a "Carta aos Comunistas" e o "A que herança devem os comunistas renunciar". Também tive acesso a alguns jornais antigos, como o "Jornal Avançando".

Na licenciatura fui estagiário no Memorial Luiz Carlos Prestes e vi que minha exposição sobre Prestes, principalmente sobre o final de sua vida, carecia de algumas publicações. Excetuando-se as obras de Anita Prestes, as teses e monografias brasileiras sobre os comunistas na reabertura não costumam citar estas documentações. Lembrando de algumas conversas que tive com a querida professora Silvia Petersen, pensei então em lançar o livro para suprir uma lacuna de fonte primária para pesquisa científica e debate político.

BdFRS - Quais são os documentos que tu reuniste no livro? E qual a atualidade deles?

Gustavo - Considero que a Nova República terminou em 2016 e 2018, afogada em suas contradições (e ainda vivemos um período de transição complicadíssimo, em elevada aceleração fascistizante). A análise do que era essa "Nova República" é de suma importância e as alternativas que visavam aprofundar a nossa democracia, ou mesmo as revolucionárias e socialistas, seguem tão atuais hoje quanto há 30 anos. Em que sentido: Prestes lançou, em 1982, uma "Proposta para discussão de um programa de soluções de emergência", tentando vincular as tarefas imediatas ao movimento real dos trabalhadores. A nova forma de dependência latino-americana, através da "dívida externa" também foi abordado por ele em Discurso em Havana de 1985. Seu texto em jornal, breve artigo de 1988, sobre a presença de uma tutela militar na nossa Constituição, agora parece ecoar cada vez mais, quando nossos militares voltam a ser agentes políticos tão presentes e atuantes quanto qualquer partido político.

A atualidade destes textos está muito no sentido de compreendermos as tarefas democráticas que não foram realizadas no findar da Ditadura, pois são estas as contradições que afloraram para acabar com o período republicano que estávamos vivendo.

Reunimos então estes documentos de Prestes, escritos em seus últimos dez anos de vida, acrescidos de jornais de militantes a ele vinculados, como o "Ecos a Carta de Prestes", o "Voz Operária" e o "Jornal Avançando". Da professora Anita Prestes trazemos dois textos, um fazendo balanço da história das táticas e estratégias dos comunistas brasileiros, de 1981, e outro inédito, recente, sobre a importância de Prestes para a revolução brasileira. Escolhemos também adicionar dois textos de Florestan Fernandes, pela sua aguda capacidade de sintetizar em linhas gerais as contribuições de Prestes e de suas posições políticas para a história brasileira.


Livro apresenta documentos como a "Carta aos Comunistas" e o "A que herança devem os comunistas renunciar" / Divulgação

BdFRS – Em uma entrevista ao Blog Prestes A Ressurgir tu falas que os posicionamentos de Luiz Carlos Prestes seguem via de regra nos meios políticos e acadêmicos muito mal compreendidos e incorporados. Na tua avaliação por que isso acontece?

Gustavo - A figura de Luiz Carlos Prestes não é fácil de se estudar. Um ano antes de ele morrer (1989) a República Brasileira fez 100 anos. Prestes foi ator político destacado em 70 destes 100. Ele engloba tanto o nacionalismo inconformado quanto a revolução comunista mundial. Tanto a resistência à Ditadura Vargas e o antifascismo quanto a tentativa de aprofundar o nosso momento democrático de 1945-1964. Tanto o combate à Ditadura Civil-Militar quanto a denúncia aos problemas da Nova República.

Em vários momentos ele se confunde com a própria história do comunismo no Brasil. Em outros é necessário ver seu próprio desenvolvimento intelectual para perceber suas ideias táticas e estratégicas. A ele a República foi oferecida em 1930. Se tivesse "se acomodado", com a anistia, poderia ter sido uma das grandes figuras consolidadoras da "Nova República" em sua tutela militar e aprofundamento do capitalismo sem nenhuma mudança profunda em conquistas democráticas.

Por isso é tão odiado, por direitistas e reformistas: ele nunca escolheu o lado fácil ou o lado apresentado pela burguesia. No final da vida, irá defender uma renovação do marxismo-leninismo, do movimento comunista brasileiro alinhado completamente às reivindicações das massas em ascensão, procurando por em prática a "revolução democrática" que Florestan Fernandes tanto pontuou.

É difícil para muita gente ter em mente que um dirigente de 80 a 90 anos de idade possa ter esse nível de disciplina e esclarecimento a favor da classe trabalhadora. Para coroar: justamente em um momento de crise do movimento comunista e sua capitulação ou mesmo liquidação. Compreender todo este complexo quadro é difícil, tanto política quando academicamente.

BdFRS – Por que tu escolheste o nome “Herança, Esperança e Comunismo” para o livro?

Gustavo - "Herança" é o termo que Anita Prestes utiliza em seu texto, resgatado de Vladmir Lenin, em "A que herança renunciamos" de fins do século XIX. Em se tratando de um olhar sobre Luiz Carlos Prestes e o movimento geral dos comunistas e dos trabalhadores há mais de 30 anos, me parece propício.

"Esperança" é o termo pelo qual Prestes ficou designado desde a Coluna, sendo chamado de "Cavaleiro da Esperança". Mostra também um pouco da utopia, necessária de termos em voga nos momentos mais duros. O último texto que trago dos “comunistas que se alinham às posições de Prestes” se chama "A Herança e a Esperança".

Adicionei “comunismo” a este último, porque afinal de contas, era a ideologia defendida por todos aqueles indivíduos históricos. Mais: era a batalha pela permanência de um marxismo-leninismo revolucionário em um momento de assenso de massas no Brasil – e também um momento em que cresciam ideias completamente contrárias ao materialismo histórico-dialético. Assim como Florestan dizia em 1980, que era necessário voltar à ótica comunista de Marx e Engels, achei que fazia por bem também colocar o termo já no título do livro.

BdFRS – Em meio a tantas incertezas e dificuldades de rumos para a esquerda, quais os principais ensinamentos de Prestes? Ou o que ele diria nesse momento?

Gustavo - Difícil pensar isso. O que diriam Florestan, Brizola, Prestes... e tantos outros?

Agora, certamente ele procuraria identificar pelo menos uma tarefa do presente: compreender a estrutura de classes no Brasil e atuar em prol daquilo que ela mais necessita. Enquanto escrevo estas linhas, ocorrem despejos imensos em acampamentos do MST, nossos povos indígenas enfrentam mais um genocídio comparável apenas ao tempo da Ditadura e a classe trabalhadora está se reduzindo a uma classe completamente órfã de direitos. E sabemos que essa agenda começou no Golpe de 2016. Já temos mais do que o necessário para traçarmos um projeto de unidade básica.

Talvez o estudo de Prestes (e de todas as figuras de luta da nossa história) seja compreender como e de que formas eles tiveram a compreensão das tarefas imediatas e necessárias a serem tocadas. Ajudando-nos enxergar como poderemos chegar às táticas corretas. Vamos esperar pela eleição de 2022? Achamos realmente que uma eleição presidencial reverterá um processo de fascistização do Estado e aparelhamento criminoso pela direita iniciado em 2016? Como se revertem tendências e processos históricos? Essas perguntas seguem em aberto...

BdFRS – A abertura do livro é com a letra da música “Voz do Leste” de Taiguara. Por que escolheu essa música?

Gustavo - Taiguara foi um dos artistas mais censurados da Ditadura, por suas músicas que, de poéticas e românticas começavam a ganhar tons cada vez mais interessantes de crítica social ao fechamento do regime. Foi impedido de gravar. Passou por dois exílios. Silenciamento. Esquecimento forçado. E mesmo assim escolheu, retornando ao Brasil, o caminho mais difícil, mais complicado. Alinhou-se ao comunismo de Prestes e ganhou novo motivo para ser censurado, por militares, mídia e um público que não queria saber de política. É uma trajetória única e merece ser mais reconhecida dentre a esquerda brasileira.

Por esta opção política, Taiguara foi seguido de perto pelo Serviço de Inteligência Nacional (SNI), desgostoso de seus discursos nas apresentações ao vivo, onde incitava o público sobre a luta da FMLN em El Salvador ou citava Che Guevara. O álbum lançado em 1983, "Canções de amor e liberdade" é extremamente político em toda a sua montagem. E "Voz do Leste" é uma música em homenagem ao periódico "Voz Operária" e aos comunistas alinhados a Prestes. Me pareceu justo fazer este encontro de camaradas na publicação.

Este ano Taiguara completaria 75 anos, e creio cada vez mais que deva ser resgatado como o cancioneiro da nossa futura sociedade.

Edição: Marcelo Ferreira