Minas Gerais

RESISTÊNCIA

Despejo do Quilombo Campo Grande é o mais longo do séc. XXI e marca as lutas sociais

Operação realizada na última semana durou 56 horas e terminou com violência policial

Campo do Meio | Brasil de Fato MG |
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"A luta foi feita com amor, com as crianças, com a família. Foi bonito." avalia Tuíra Tule, da coordenação do acampamento - Cássio Diniz

O despejo do acampamento Quilombo Campo Grande, no Sul de Minas, fica para a história como o mais longo do século XXI no Brasil. Uma operação programada para começar e terminar na manhã da quarta-feira (12) tornou-se uma saga que deixa profundas marcas nas lutas sociais do estado. Por 56 horas, famílias sem-terra resistiram pacificamente à pressão da Polícia Militar, dia e noite, no meio de uma estrada, sob o sol forte e o frio da madrugada, respirando poeira e ouvindo ameaças.

Em meio à pandemia que já causa mais de quatro mil mortes no estado, com as autoridades sanitárias recomendando evitar aglomerações, 150 policiais esgotaram as vagas dos hotéis nas cidades de Campo do Meio e Campos Gerais. Pela madrugada, a tropa cercou o acampamento com helicóptero, carros, drones, balas, bombas, escudos e cassetetes, entre outros instrumentos de repressão. Era o 12º despejo na trajetória do Quilombo Campo Grande, uma área com 11 acampamentos, cerca de 450 famílias e mais de 2 mil pessoas.

Foi o 12º despejo na trajetória do Quilombo Campo Grande, uma área com 11 acampamentos, cerca de 450 famílias e mais de 2 mil pessoas

Um precedente aumentava a preocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), responsável pela coordenação das famílias. Em 2009, numa reintegração no Tiradentes, local pertencente ao Quilombo, a polícia avançou ilegalmente sobre outras três áreas que não estavam previstas no mandado. Na época, as tropas expulsaram 98 famílias. Plantações foram destruídas, animais mortos e casas de alvenaria derrubadas.

“Hoje, sou eu. Amanhã, pode estar na porta de qualquer um. Há um tempo atrás, ele [o latifundiário Jovane Moreira, autor da ação] falou que não é só a gente que ele quer tirar. Então, a luta aqui não é só nossa, é de todos, tem que abraçar”, proclamou Wellinton Fagundes, um dos agricultores ameaçados de perder sua casa. A resistência mobilizou centenas de trabalhadoras e trabalhadores, reunidos de madrugada em uma assembleia ao ar livre, entoando cânticos e palavras de ordem.

Estrada adiante

Na quarta (12), por todo o dia, a comunidade resistiu na estrada à desocupação da escola, de um barracão e de outra estrutura, o antigo Departamento de Máquinas e Operações (DMO). Esses imóveis, juntos, continham seis famílias. Rapidamente, a notícia se espalhou nas redes sociais, gerando comoção e adesão.

“Que governo ataca uma escola? O governo Zema. Hoje, no Acampamento Quilombo Grande, em Campo do Meio, com mais de 30 viaturas da Polícia Militar realizando despejo em plena pandemia”, comentou, em suas redes, a deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT). Nos últimos dias, ela havia apresentado na Assembleia Legislativa um projeto de lei (PL 2128) prevendo a suspensão das reintegrações de posse enquanto durar a pandemia.


Materiais e móveis da Escola Popular Eduardo Galeão / Cássio Diniz

No fim da tarde, quando a PM conseguiu chegar ao DMO, Romeu Zema (Novo), político que se elegeu prometendo criminalizar ocupações, publicou em sua conta oficial no Twitter: “A @sedesemg [Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social] informa que solicitou a suspensão do cumprimento da ordem judicial para reintegração de posse da área, durante a pandemia”. Duas horas depois, em outra mensagem, disse que a solicitação, na verdade, tinha sido feita na terça (11), mas fora rejeitada pela Justiça. O desmentido colocou a tag #ZemaCovarde na lista das publicações mais faladas em todo o Brasil.

Reação veio na forma de protestos em frente às lojas Zema, trancamento de estradas, manifestação no Palácio da Liberdade, pedido de suspensão no STF, 64 deputados solicitando reunião com o governo, além da manifestação de padres, bispos, intelectuais, artistas e ativistas

Jovane Moreira, autor da ação, contou que, dos espaços a serem reintegrados, ele iria demolir a Escola Eduardo Galeano, equipamento que já abrigou cursos de alfabetização de crianças, jovens e adultos. “Eles montaram um teatro ali”, acusou. Nas outras construções, disse ter planos para desenvolver “projetos sociais na área agrícola” que iriam “gerar empregos”.

A entrevista foi concedida na quinta-feira (13), na sede da Fazenda Ariadnópolis, mesmo lugar onde, por exigência da polícia, a imprensa devia passar para fazer o credenciamento e também onde estavam guardados alguns veículos da PM. Enquanto Jovane era entrevistado, a poucos quilômetros dali, um trator punha a escola em ruínas.

Criminalização da advocacia

A temperatura do conflito subiu na quinta-feira (13). O dia amanheceu com protestos em frente às lojas Zema no interior de Minas, trancamento de estradas e uma manifestação no Palácio da Liberdade. A bancada do PT na Câmara solicitou ao ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, liminar suspendendo a ação. A Comissão de Direitos Humanos e Minorias, o Conselho Nacional de Direitos Humanos e 64 deputados estaduais e federais mineiros pediram reunião com o governo para discutir o despejo. Padres, bispos, intelectuais, artistas e ativistas se manifestaram na internet.

Entre a quarta-feira (12) e esta segunda-feira (17), o número de contágios pelo novo coronavírus em Campo do Meio quase dobrou, passando de 14 para 27

“Quero aqui reafirmar o apelo em prol das famílias que estão sendo despejadas, o apelo ao governador Romeu Zema, ao presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao presidente da Assembleia Legislativa e ao Secretário de Segurança e comandante geral da Polícia Militar”, clamou, em vídeo, Dom Vicente Ferreira, bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte.

Após a troca de turno da PM, as pressões contra a comunidade aumentaram e a polícia passou o dia ameaçando usar a força. As vias de acesso ao acampamento foram fechadas para automóveis e pessoas que tentavam entrar ou sair eram revistadas. “Nós estamos sitiados. Nem para comprar um pão pra comer a gente pode sair”, reclamou o agricultor Sebastião da Silva.

Oficiais de Justiça trazem um mapa feito por uma empresa que é do filho do fazendeiro

Por volta das 14h, o comando da operação deu ultimato para que os sem-terra abandonassem a estrada. No momento em que os advogados negociavam com os policiais, um incêndio no pasto, próximo ao DMO, se alastrou. O vento impulsionou as chamas na direção da estrada, obrigando os sem-terra a fugirem para o morro e os policiais a recuarem.

A polícia tentou atribuir aos advogados do movimento a responsabilidade pelo incêndio. “Os advogados estão sendo acusados de homicídio tentado, no sentido de criminalizar a luta pela terra e, mais do que isso, o direito à representação. Estamos acionando a Defensoria-Geral e todos os meios para garantir o exercício do trabalho desses profissionais”, informou Clara Moreira, representante da Ordem dos Advogados do Brasil e assessora do mandato da deputada Leninha (PT).


"Após a troca de turno da PM, as pressões contra a comunidade aumentaram e a polícia passou o dia ameaçando usar a força" / Cássio Diniz

Despejo violento

Na sexta-feira (14), a polícia retomou as ameaças e bloqueou a passagem de um padre da cidade, que tentava entrar no local para celebrar um culto ecumênico com os sem-terra. À tarde, depois de 56 horas de resistência, a PM iniciou a repressão, lançando uma chuva de bombas de gás e efeito moral contra mais de 400 pessoas, que correram pela estrada, fugindo dos ataques. O quintal de uma casa que estava fora da área delimitada no mandado judicial foi alvo de bombardeios. 

A PM afirma que um homem da corporação ficou ferido. Entre os sem-terra, um rapaz passou mal, ao inalar grande quantidade de gás lacrimogêneo, e teve que ser socorrido pela equipe de saúde do acampamento. Outro rapaz teve a clavícula deslocada. Policiais prenderam uma mulher e três homens, acusando-os de “desobediência”, “resistência” e “obstrução da Justiça”. As quatro pessoas foram liberadas no mesmo dia. 

“Há possibilidades de impedir que essas atrocidades aconteçam. É para paralisar essa política de desumanidade que temos vivido”, afirma liderança

Ao todo, a contar de fevereiro, quando foi proferida a decisão judicial, 14 famílias foram retiradas, sendo oito na operação da última semana. Nesta segunda (17), pessoas contratadas pelo autor da ação e a polícia demoliram quatro casas e destruíram lavouras e outros bens dos agricultores, embora tenha sido dito que não havia interesse em destruir os imóveis, à exceção da escola. 

Entre a quarta-feira (12) e esta segunda-feira (17), o número de contágios pelo novo coronavírus em Campo do Meio quase dobrou, passando de 14 para 27, de acordo com os dados oficiais. As informações foram divulgadas no Boletim Epidemiológico da Secretaria de Estado da Saúde. O MST fez uma manifestação em frente à Prefeitura de Campo do Meio, cobrando testes de Covid-19 para todas as pessoas do acampamento, mas não foi recebido pelo poder público municipal.

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Área controversa

Perante os advogados, o comando da PM e os oficiais de Justiça alegaram estrita observância da lei e da decisão judicial. O MST, por sua vez, aponta que houve incongruência no processo de reintegração de posse. Na origem, o pedido do autor abrangia uma área de 26 hectares, que depois foram aumentados para 52 pelo juiz da Vara Agrária de Minas Gerais, Roberto Apolinário de Castro, que em seguida se afastou do cargo. Os 26 hectares iniciais não abrangiam as casas para além do DMO.

“Não bastasse isso, os oficiais de Justiça trazem um mapa feito por uma empresa que é do filho do fazendeiro, a Metasul, com medição in loco feita por Jovane Filho com casas de pessoas que estão na posse há 10 anos, uma área que não estava prevista no primeiro momento. Não é um mapa isento, emitido por um terceiro, imparcial, mas por uma das partes. No entendimento do apoio jurídico do movimento, o Estado de Minas age na grilagem de terras”, acrescenta o advogado Guilherme Jaria.


Jovane Moreira mostra à reportagem um mapa que aponta área de 52 hectares / Wallace Oliveira

Além disso, uma decisão em segunda instância, em novembro de 2019, considerou que a falida Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (Capia), que reivindicava a posse do terreno, havia desistido anteriormente de qualquer liminar de despejo. Segundo o MST, as casas para além do Departamento de Máquinas e Operações estavam resguardadas por essa decisão e não podiam ser despejadas a favor de Jovane Moreira.

Uma luz no meio da estrada: a solidariedade

“A luta foi feita com amor, com as crianças, com a família. Foi bonito. E, para além do despejo, nos fez entender que, se estamos todos juntos, há possibilidades de impedir que essas atrocidades aconteçam e ser esperança para a classe trabalhadora, em meio a tanta desesperança. É para paralisar essa política de desumanidade que temos vivido”, avalia Tuíra Tule, da coordenação do acampamento.

A prioridade agora, segundo ela, é cuidar das famílias desalojadas, reconstruindo as casas tijolo a tijolo, assim como a escola Eduardo Galeano. “Do município, vários comerciantes se solidarizaram, doando materiais. Várias organizações também estão se prontificando nesse momento tão difícil para nós. E isso também é um reconhecimento do que o MST vem fazendo na solidariedade”, conclui.

Decreto que garantia desapropriação não foi cumprido

AGOECOLOGIA No local, é produzido o famoso café Guaií, sem uso de agrotóxicos

Considerado um dos maiores acampamentos do MST em Minas, o Quilombo Campo Grande, no município de Campo do Meio, ocupa a área da antiga fazenda de Ariadnópolis, outrora pertencente à Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (Capia). Por décadas, o local foi marcado pelo plantio de cana para a produção sucroalcooleira, como também pela presença de trabalho infantil e trabalho análogo à escravidão.

“Em 1972, eu tinha 12 anos de idade. Eles saíram chamando as mulheres para plantar cana e eu vim com minha mãe. Dessa época para cá, eu nunca saí daqui. A gente trabalhava das sete às quatro da tarde direto, plantando, capinando. Quando eu cresci, faltava gente dentro da usina, a gente ia para lá, trabalhava 12 horas por dia. Pegava domingo e fazia 24 horas seguidas. O que eles pagavam só dava para comer”, recorda o senhor Natalio Oliveira, um dos acampados do MST.

Reportagem especial do Brasil de Fato mostrou que, em 1994, a Capia demitiu 400 trabalhadores sem pagar devidamente a rescisão e sem recolher as contribuições ao FGTS e INSS. Em 1996, a empresa parou de operar. As dívidas trabalhistas ultrapassaram os R$ 300 milhões, montante superior ao preço do terreno. 

Pedido de reintegração partiu de Jovane que tenta reativar a usina falida para cumprir acordo com empresário que é um dos maiores produtores de café do país

A partir de 1998, centenas de famílias ocuparam a terra e 140 eram de ex-funcionários da usina. Terreno ocupado, local para moradia e trabalho. De acordo com o MST, em um ano, 11 áreas do Quilombo Campo Grande chegaram a produzir 8,5 mil sacas de café e 1.100 hectares de lavouras com 150 variedades de milho, feijão, mandioca, amendoim, ervas medicinais, frutas e hortaliças. Tudo sem uso de agrotóxicos. Vem do Quilombo o famoso café Guaií. O acampamento também participa do programa nacional de reflorestamento do MST que, na próxima década, pretende plantar 100 milhões de árvores no Brasil.

“Antes, eu trabalhava de pedreiro, já cheguei a levantar uma casa em 24 horas, tinha que arrumar um mundaréu de gente de dia e de noite. Hoje, eu planto de tudo aqui: beterraba, cenoura, alface, couve, tudo o que é de horta eu tenho. A gente não tem salário. Até hoje, graças a Deus, eu nunca passei um dia de fome, tenho para mim e qualquer pessoa que chegar à minha casa”, conta com orgulho Sebastião da Silva, que foi morar com a esposa no acampamento há nove anos.

A história da luta pelo terreno parecia chegar a um desfecho em 2015, quando o ex-governador Fernando Pimentel (PT) assinou o Decreto 365, desapropriando 3.195 hectares da falida Usina Ariadnópolis para fins de colonização agrícola. O governo ofereceu R$ 66 milhões a título de indenização à empresa, mas a Capia contestou o decreto na Justiça.

Em 2017, a Comarca de Belo Horizonte deu causa ganha ao sem-terra, mas, ao ser distribuído na Comarca de Campos Gerais, o processo ficou parado. Em 2019, o novo governador, Romeu Zema, revogou o decreto de desapropriação da área da sede, que contém o parque industrial que está parado desde 1996, fazendo o conflito retroceder a seu início.

Com a revogação, veio o pedido de reintegração, pedida por Jovane de Souza Moreira. Ele tenta reativar a usina falida para cumprir um acordo com a Jodil Agropecuária e Participações Ltda, pertencente ao empresário João Faria da Silva, um dos maiores produtores de café do país.

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Edição: Elis Almeida