Paraíba

FONTES HISTÓRICAS

Artigo | Patrimônio Cultural Digital da Paraíba

Mais de 242 mil registros de memória histórica em escala global

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Site Patrimônio Afro-Brasileiro No Nordeste Oriental. Disponível em: http://afro.culturadigital.br/colecao/neabiafroparaiba/ - Site afro.culturadigital.br

Em 2012, uma equipe elaborou um projeto propondo a digitalização de fontes históricas ameaçadas de desaparecimento, com o propósito de preservar a memória histórica, democratizar o acesso a documentos, visando a produção de novas narrativas sobre a experiência histórica e cultural da população brasileira, fosse ela livre ou escravizada.

O esforço coletivo resultou em dois projetos que foram apresentados ao Programa de Arquivos Ameaçados (Endangered Archives Programme-EAP), coordenado pela Biblioteca Britânica (Inglaterra) com co-coordenação pela Universidade Vanderbilt (Estados Unidos). Esta dispõe de um programa, o Arquivo Digital das Sociedades Escravistas, no original “Slave Societies Digital Archive” (anteriormente “Ecclesiastiacal and Secular Sources for Slave Societies-ESSSS), que tem disponibilizado plataformas digitais (acesso livre e gratuito) com documentos variados relacionados aos povos africanos e seus/suas descendentes em sociedades escravistas. 

Uma ampla parceria, internacional e nacional, garantiu a efetivação de dois projetos, entre os anos de 2013 e 2020. Na Universidade Federal da Paraíba, contamos com apoio do Departamento de História, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-brasileiros e Indígenas/NEABI, Ministério da Cultura, Reitoria e direção do Centro de Ciências Humanas e Letras/CCHLA, para estabelecimento de acordos com gestoras e gestores dos arquivos que autorizaram a digitalização dos documentos. O primeiro projeto, EAP 627 Documentos ameaçados: digitalização de fontes secular e eclesiástica do século XVII ao XIX em São João do Cariri e João Pessoa, Paraíba, Brasil, foi desenvolvido entre 2013 e 2015, com participação de mais de vinte estudantes de vários cursos de graduação, sobretudo da História e da Arquivologia. Como resultado, obtivemos 82.890 imagens de documentos históricos mais antigos dos seguintes acervos paraíbanos: Arquivo Histórico da Paraíba (renomeado como Arquivo Histórico Waldemar Duarte); Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano/AIHGPB, ambos em João Pessoa/PB, e o Arquivo da Paróquia Nossa Senhora dos Milagres, em São João do Cariri.

Destacamos algumas tipologias do material digitalizado: livros manuscritos de 1701 a 1889, contendo Registro de sesmarias e terras, Atos da Administração Central (Portugal e Brasil), Cartas Patentes, Atos de Governo da Paraíba, Instrução Pública, Câmara Municipal e Assembleia Provincial, Prefeitura, Chefia de Polícia, Tesouro Provincial, Administração de Rendas, Magistrados; livros manuscrita e impressos de 1660 a 1917 referentes a coleção de leis provinciais; assentos eclesiásticos (1752-1931), entre outras.

Estas e outras fontes históricas digitalizadas no EAP 627 estão disponíveis ao público na seguinte plataforma digital: https://slavesocieties.org/collections/brazil e, parcialmente, na Plataforma Tainacan (http://afro.culturadigital.br/collection/neabiafroparaiba/ ). 


Coleções Leis Provinciaes, Parahyba do Norte, de 1862. Disponível em: https://essss.library.vanderbilt.edu/islandora/object/essss%3A297516#page/1/mode/2up / Site Slave Societies Digital Archive; https://essss.library.vanderbilt.edu/collections/brazil.

O segundo projeto, EAP 853 Criação de Arquivo Digital de Registros Criminais e Notariais do século XVIII e XIX, em Mamanguape, São João do Cariri, e João Pessoa, Paraíba, Brasil, desenvolvido entre 2015 e 2020, manteve os objetivos do primeiro, ou seja, a digitalização, preservação e divulgação de fontes históricas. Nesse projeto,  com destaque para documentos cartoriais de três municípios paraibanos, João Pessoa, Mamanguape e São João do Cariri, os itens documentais escaneados perfizeram um total de 158.672 mil imagens. Esta memória histórica foi produzida por órgãos públicos, de 1782 a 1900, como o Juízo de Órfãos e Ausentes (testamentos, inventários, procurações, prestações de contas de tutores, entre outros), o Juízo Comercial (Justificação de embargo, Ação de crédito, Libelo cível de embargo, Ação de despejo, Carta de sentença de ação ordinária comercial, Libelo cível de dívida, etc.) e o Juízo Municipal de Direito (Ações Criminais e Cíveis).  

Escolhemos, por fim, dois exemplos de fonte histórica para apresentar à leitora e ao leitor desse artigo sobre memória histórica da Paraíba. A primeira, trata-se de uma lei municipal de cidade de Guarabira (Independência) que procurava controlar as reuniões de pessoas escravizadas em tavernas, com a escrita da época o documento tem o seguinte texto: Artigo 74 da Postura Municipal de Independência: “Fica prohibio nas tavernas a reunião de [...] escravos, por mais tempo de que o necessario para fazerem suas compras, o que excedera de quinze minutos, sôb pena de deis mil réis de multa ao dono da respectiva taverna" (Arquivo Histórico da Paraíba, Coleção de Leis Provinciais da Paraíba do Norte, 1883, p. 22), com grifos nossos.  

Outro exemplo de documento é um assento de casamento de um casal de escravizados. Sendo que a noiva era uma mulher africana, sobrevivente da travessia atlântica. O nome dela era Maria e dita como “gentio de Guiné”, Luís era seu marido. Ambos viveram no distante século XVIII no interior da Paraíba, em São João do Cariri, município que está distante da capital em cerca de 215 Km. No documento encontramos dados sobre pessoas livres e escravizadas, ou seja, alguns indícios das relações sociais do período escravista.

Segue o registro histórico:

“Aos vinte e dois digo aos vinte e coatro dias do mês de junho de mil setecentos e sincoenta e sette annos [24/06/1757] na fazenda da Serra feitas denunciaçons na forma do Sagrado Consilio Tridentino onde são nubentes moradores sem descobrir impedimento em [minha?] [prezensa?] estando prezentes por testemunhas Luiz de Albuquerque e Brás Marinho e outras pessoas muitas conhessidas se casarão por palavras de prezente em face da Igreja Luis com Maria do Gentio de Guiné escravos de Brás Marinho, todos deste bispado de Pernambuco e logo [ilegível] conforme os rittos e cerimoniais da Santa Madre Igreja [...]. (Livro de registro de casamento da Paróquia Nossa Senhora dos Milagres, Livro 1752-1816, ff.53), Grifos nossos. 

Os documentos descritos relatam memórias de vários sujeitos sociais do passado paraibano que precisam ser acessadas, analisadas, criticadas, divulgadas, compreendidas, transformada em “história-conhecimento” (Silveira, 2008), por exemplo. São artefatos de memórias e precisam ser preservados, seja em seu suporte original ou por meio digital, conforme a proposta e desenvolvimento dos EAPs que, além de possibilitar novas pesquisas de diferentes áreas de conhecimento, salvaguardou o patrimônio cultural brasileiro, a partir da memória social, individual e coletiva. A memória é aqui entendida como patrimônio cultural da humanidade. 

Recordamos, ainda, que o dia 23 de agosto de cada ano é o Dia Internacional da Lembrança do Tráfico de Escravos e sua Abolição. Durante o período do comércio atlântico (século XVI ao XIX) foram transportadas mais de doze milhões de mulheres, crianças e homens africanos e foram escravizados nas Américas. Importa ressaltar que a experiência desses sujeitos sociais nos legaram um “patrimônio de uma cultura dinâmica” que, ao longo do tempo, tem sido reinventada e renovada (Oliveira, 2019). Contudo, tal patrimônio ainda não tem o pleno reconhecimento, como parte integrante do patrimônio brasileiro, tanto por relações de poder desiguais quanto pela permanência do “racismo epistêmico” (Bernardino-Costa; Grosfoguel, 2016). Com a democratização de acesso às fontes históricas, viabilizada com a realização dos projetos EAPs, novos conhecimentos podem ser produzidos,  oportunizando a todas e todos o direito à memória, à História. 

Referências 

BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, Ramon. Decolonialidade e perspectiva negra. Revista Sociedade e Estado. Brasília, UnB, v. 31, n. 1, Jan./Abril, p. 15-24, 2016. Disponível no link: http://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00015.pdf. 

LIMA, Maria da Vitória. B. Acervos Afro-digitais: experiência, formação e patrimônio. XXIX Simpósio Nacional de História, Brasília,2017. https://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1502844632_ARQUIVO_ACERVOSAFROanpuh2017ST13.pdf 

OLIVEIRA, Otair Fernandes de. A cultura afro-brasileira como patrimônio cultural: reflexões preliminares. Enecult: Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, Salvador, p. 01-15, agosto, 2019. Disponível no seguinte link: http://www.enecult.ufba.br/modulos/submissao/Upload-484/111688.pdf 

SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Movimentos Sociais, Memória e História. Universidade e Sociedade, Brasília, ANDES-SN, p. 185-193, 2008. 

 

*Maria da Vitória B. Lima, Professora na Universidade Estadual do Piauí, doutora em História e Coordenadora do EAP na Paraíba/Brasil.

**Solange P. Rocha, Professora na Universidade Federal da Paraíba, doutora em História e Coordenadora do EAP na Paraíba/Brasil.

***Courtney J. Campbell, Professora na Universidade de Birmingham/Inglaterra, doutora em História e Coordenadora do EAP na Paraíba/Brasil.

 

 

 

Edição: Maria Franco