Ceará

Mulheres Negras

Rafaella Florencio:"levei um certo tempo para entender o que era ser negra "

O Brasil de Fato entrevistou a militante do movimento negro e coordenadora do Neabi

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
O dia 25 de julho é uma data construída historicamente - Paulo Pinto

O Brasil de Fato Ceará entrevistou a militante do movimento negro, professora do Instituto Federal do Ceará e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e indígena do campus Canindé, Rafaella Florencio. Para ela, “o dia 25 de julho é uma data construída historicamente, uma data que não foi forjada hoje, nem ontem, e que, felizmente, ano a ano vem se popularizando.”. Confira trechos da entrevista abaixo.

Início da Militância
Eu, como tantos outros brasileiros, levei um certo tempo para entender que era negra e para entender o que significava esse fardo político de ser conscientemente negra. A minha militância se dá ainda muito jovem, com 14 ou 15 anos eu entro no movimento estudantil, nele permaneço até a conclusão da minha primeira graduação, em 2008. Então eu saio do Crato, cidade que nasci e cresci, para fazer mestrado em Fortaleza. Vai ser nesse final de trajetória do movimento estudantil que eu faço as minhas primeiras aproximações, primeiro com o movimento de mulheres, vale ressaltar que a região do Cariri, é uma região atípica no que se refere aos grandes indicies de violência contra a mulher, especificamente de feminicídio. Eu ingresso no movimento de mulheres defendendo a bandeira contra a violência e nesse espaço eu encontro pessoas que vão revolucionar minha vida, especialmente duas irmãs, que são Verônica e Valéria Neves, que são fundadoras de uma organização do movimento negro do Cariri, chamado Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec). 

É nesse contato, já com 22 anos, que eu vou entender a dimensão política do que é ser negra, me entender quanto negra e entender a necessidade de me organizar enquanto negra. Nos últimos 15 anos as minhas pautas se deram muito na área da educação, especialmente no que se diz respeito à Lei de Cotas, inclusive no Núcleo de Estudos e Pesquisa Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi). Eu sou da primeira geração de concursos que houve cotas para negros e negras, essa nova geração que entra na instituição vai dar uma repaginada nos Neabis, hoje somos mais de 20 atuando em todas as regiões do Ceará.

Movimentos Negros
Cabe a nós, população negra brasileira, que somos a maioria da população numericamente, mas minoria no que se diz respeito a acesso a qualidade de vida, lutar por espaços políticos, seja em organizações negras, seja em organizações em geral. Nós temos um duplo papel, e nós mulheres negras um papel triplo, nós precisamos criar espaço nos locais de poder e de decisão e dizer, é impossível discutir qualquer pauta séria nessa nação que não coloque como centralidade as especificidades da população negra. No que diz respeito às organizações dos movimentos sociais, especificamente do movimento negro, nós precisamos dizer a todo momento, nós mulheres negras temos especificidades que foram negadas historicamente por todas as organizações e penso que o mais importante a se dizer é que o feminismo negro tem um projeto de sociedade e nesse projeto estão inclusas as mulheres negras, mas é um projeto de sociedade que abarca todos os sujeitos.

Quando a gente fala de movimento negro, e geralmente falamos no singular, nós estamos falando na verdade de uma pluralidade, por exemplo, hoje eu faço diálogos muito potentes com o pessoal que discute sobre racismo ambiental, que discute sobre saúde, então quando falamos em movimento negro ou de organizações de mulheres negras, não estamos falando de um movimento único, nós estamos falando de vários movimentos, que embora sejam diversos, não são dispersos. Há um fio condutor entre esses vários movimentos, que é a luta contra o racismo, que é tão perverso, e que se aventa na memória, na história e no nosso cotidiano, que no Brasil não há racismo. Nós vivemos em um país que é racista, esse racismo não é velado e que, na verdade, há um processo de naturalização. Por que a pele de quem está encarcerado é preta e a pele daqueles que ocupam as cadeiras do curso de medicina são brancos? Inclusive em Salvador, que é o lugar mais negro fora da África, a cor da pele daqueles que ocupam as vagas do curso de medicina é clara. Há algo de errado, e é estrutural na nossa sociedade.

A situação da mulher negra na Pandemia
Anterior a pandemia nós já vivenciávamos uma crise econômica e não apenas nacional, uma crise internacional a qual os economistas já apontavam que entraríamos um processo de recessão econômica. Trocando em outras palavras, na mesa do trabalhador e da trabalhadora, já se faltava carne. Se hoje a gente se preocupa se há ausência de alimentos, ontem já não se tinha o gás. O que acontece nesse momento de pandemia é uma junção de infelizes fatores, temos a união de uma crise econômica, o governo Bolsonaro e sua ingerência no que diz respeita à condução de políticas que possam contemplar de fato a grande massa dos trabalhadores e junto a isso, nós vivenciamos uma pandemia, uma crise sanitária também internacional e que esse governo também demonstra sua ineficiência no que diz respeito ao cuidado com a população. 

No início da pandemia houve um rígido isolamento, acho que isso é inquestionável, a diferença do início do isolamento para agora é que, no início do isolamento, a covid-19 circulava entre a elite, se a gente for comparar a vinda do coronavírus para o Brasil com um elevador, a gente poderia dizer que o vírus entrou pelo andar de cima e a elite brasileira estava nesse andar, por que a elite é que tinha acesso a outros países que já estavam em surto, não é à toa que a primeira brasileira a morrer em decorrência do coronavírus será uma mulher negra, empregada doméstica de São Paulo, ela não foi para a Europa, mas sua patroa foi para Itália, traz consigo esse vírus e por uma série de questões que não são apenas o acesso à saúde, mas históricas alimentares, a sua patroa sobrevive e ela acaba morrendo. 

Para discutir sobre a condição da mulher negra durante a pandemia é preciso que a gente dê um passo atrás e entenda qual é o contexto de ser uma mulher negra no Brasil. Inevitavelmente falar sobre a condição da mulher negra, não penso outro caminho, que não seja trazer também à baila sobre quais profissões nos são destinadas historicamente. Nós somos as herdeiras das mucamas, hora nós somos as hiper-sexualizadas no carnaval, mas nos outros dias do ano nós somos a representação da empregada doméstica. Historicamente cabe às mulheres negras o cuidado, das suas famílias e do cuidado da família de seus patrões. O trabalho da empregada doméstica é um trabalho desvalorizado, há diversos estudos que apontam que essas mulheres não têm nenhuma segurança trabalhista, no que diz respeito ao seu desempenho laboral, na maioria das vezes elas recebem menos que um salário mínimo, trabalham mais que oito horas diárias, enfim, é uma condição de extrema pauperização. 

Com o processo de isolamento nós temos duas situações, a primeira é das mulheres que foram dispensadas e não tiveram o direito de receber o auxílio emergencial e a segunda é das mulheres que as patroas não abrem mão de ter empregadas domésticas e que se submeteram, mesmo com a pandemia, a continuar trabalhando, deixando de lado sua família e continuaram cuidando da família de outros, com medo de perder o emprego, já que essas mulheres, segundo apontam alguns estudos, são provedoras de seus lares. A mãe do menino Miguel representa qual é o fardo, em relação ao trabalho doméstico, das mulheres negras no Brasil. Nós vemos uma mulher negra, doméstica, que se vê obrigada a levar seu filho para o trabalho, por não haver com quem deixar seu filho nesse período da pandemia, já que as creches estão fechadas. A essa mulher é negado o direito ao isolamento, e não é um fato isolado, e a forma como a justiça conduz diz muita coisa também. Quando a covid-19 chega no Brasil escancara-se a desigualdade social, que nessa desigualdade os negros e as negras são o elo mais frágil e escancara-se ainda a tese de que somos todos iguais.

Raízes do povo cearense
O saber letrado, acadêmico e científico e que nossa sociedade tanto valoriza, e desvaloriza os saberes populares, é um lugar de poder porque será nesse lugar que os projetos de sociedade irão se consolidar, isso se dará no campo das ciências exatas, mas também nas ciências humanas, um ótimo exemplo é a história. No Brasil há um mito da democracia racial, se consolidou na memória, nas lembranças, na cultura e também na ciência, uma ideia de que somos todos iguais, negros, indígenas e brancos, e vivemos todos numa harmonia racial, o que é uma grande falácia, basta olhar os sujeitos que estão no presídio e quem são os sujeitos que estão nos cursos de medicina. 

Esse projeto, que passa pela academia, e essa pesquisa poderia ter facilmente sua data trocada para o início do século XX, na década de 1920 e 1930 era exatamente esse debate. Se criava um campo acadêmico, se buscava criar uma história do Brasil que enaltecia grandes heróis, grandes homens, do sexo masculino mesmo, com seus grandes feitos, todos eles europeus ou descendentes, inclusive os bandeirantes que nós sabemos que eram, na verdade, os bandidos, eles invadiam as terras, eles que matavam e eles, os bandeirantes, que escravizavam, e eles que são figurados nas estátuas, principalmente de São Paulo. Dentro desse projeto de sociedade nós vamos ter uma elite intelectual que, não por coincidência, também é branca e que vai buscar uma origem brasileira branca.

Essa elite irá realizar congressos, encontros acadêmicos para forjar uma versão histórica aonde o Brasil carrega essa herança europeia, mais precisamente, portuguesa. Como não podiam eliminar a presença negra e indígena, embora quisessem, criaram esse mito da democracia racial. Nas versões historiográficas feitas pela elite, através de historiadores e memorialistas, nós somos descendentes de europeus e os negros e indígenas deram sua contribuição através do samba e da tapioca, por exemplo. 

Uma pesquisa feita em um estado que se tem uma população de mais de nove milhões de cearenses, e que usa uma amostragem de 160 pessoas, academicamente falando, ela é uma pesquisa insustentável, ela não representa academicamente nada. Além disso ela não diz quais foram os critérios usados na escolha desses sujeitos. Essa pesquisa diz muito sobre o imaginário da elite cearense, que sonha ser europeia, escandinava ou vinking. A escola, a educação tem um papel de desconstruir essa naturalização da negação da nossa herança negra e indígena.
 

Edição: Monyse Ravena