Coluna

Ser socialista no século 21

Imagem de perfil do Colunistaesd
O socialismo do século 20 deixou uma lição: todas as vitórias dentro das fronteiras de um país, mesmo que seja uma grande nação, estão ameaçadas pela ordem imperialista mundial - Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
Ser socialista é defender, incondicionalmente, a luta contra os interesses dos capitalistas

As circunstâncias da pandemia convidam para reflexões mais introspectivas. O isolamento nos deixa mais em contato com a dimensão íntima das nossas vivências. A tragédia humanitária que nos ameaça é mais uma demonstração que o mundo não vai mudar sem muita luta. É, portanto, razoável que muitos ativistas jovens, em suas primeiras experiências, estejam se indagando sobre o que é a militância socialista, e se é isso que querem para as suas vidas.

A militância socialista deve ser um compromisso de vida. Ela consiste, essencialmente, em quatro decisões, que são quatro rupturas com a ordem do mundo em que vivemos. Decisões que envolvem rupturas são decisões difíceis. Mais difíceis quando não são somente a adesão a ideias, mas exigem um engajamento na ação para a transformação da ordem do mundo.

Leia também: A paciência revolucionária

A primeira é uma ruptura moral com a indiferença diante da injustiça e tirania que, em distintos graus, nos cercam. As pressões econômicas, sociais, políticas e ideológicas que procuram legitimar a sociedade tal como ela é, são avassaladoras. O sentimento de impotência pode ser embrutecedor e devastador.

Romper com a indiferença é o primeiro passo da revolta sem a qual nenhuma militância é possível. Militantes socialistas são pessoas rebeldes. Esta decisão supõe uma autotransformação profunda que não é indolor. Ela envolve sacrifício porque, na dimensão subjetiva da vida, aquela que remete aos nossos afetos, algumas relações pessoais de confiança serão, infelizmente, perdidas. Em compensação, outras relações serão construídas. Mas aceitar perdas é um processo de amadurecimento. Essa chama de repulsa, de indignação, de desprezo contra a indiferença não pode se apagar. É preciso aprender a cultivá-la.

A segunda decisão é uma ruptura de classe. Ser socialista é uma adesão ao movimento social dos trabalhadores e dos oprimidos. Ser socialista é defender, incondicionalmente, os interesses dos que vivem do trabalho em luta contra os interesses dos capitalistas. Não importa em que classe social cada um de nós nasceu. Pode ter nascido na burguesia, ou em qualquer estrato da classe média, ou nas camadas mais oprimidas do proletariado. Há lugar para todos no movimento socialista, e certidão de batismo não agiganta, nem tampouco diminui ninguém. Ninguém escolheu a família em que nasceu.

Leia mais: Uma esquerda com instinto de poder

O valor de cada um vem da seriedade e honradez de seu compromisso na luta. Pode ser uma integração no movimento sindical ou de juventude, no de mulheres ou negro, no popular ou de direitos humanos, na luta LGBT ou ambiental, indígena ou internacionalista e outros. São inúmeras a frentes de luta e cada um de nós deve procurar a melhor localização para si mesmo. O que importa é ter uma participação consistente na luta anticapitalista.

Trata-se de uma ruptura com a acomodação de uma vida dedicada a cuidar somente de si mesmo. Tampouco é indolor. A vida é uma experiência suspensa no tempo. E além da doação de tempo, a militância envolve correr riscos. Não se desafia a ordem do mundo em vão. Riscos calculados, riscos coletivos, mas, finalmente, riscos.

A terceira decisão é o compromisso com uma organização socialista. Todos os movimentos sociais que se apoiam na mobilização de massas são excelentes escolas de militância. Mas não são instrumentos suficientes para mudar o mundo. As lutas sociais têm muitos revezes, e as derrotas pesam. Sem clareza estratégica os mais valorosos desmoralizam. Integrar uma organização socialista é abraçar um projeto político em um patamar muito superior.

Não é possível lutar contra o capitalismo em voo solo. É preciso ter a maturidade e a humildade de compreender que a luta anticapitalista é um projeto histórico grandioso, porém, é uma aposta cheia de incerteza. Ser independente e “companheiro de viagem” pode parecer mais confortável do que uma participação disciplinada. A integração em um coletivo não diminui a individualidade de ninguém, ao contrário.

Há uma dialética entre a afirmação pessoal e a colaboração no coletivo. Não é sem tensões, evidentemente. Ser socialista é abraçar uma visão coletivista dos destinos da vida civilizada, mas ninguém pode aceitar a sua anulação. Ninguém quer ou aceita ser usado ou manipulado. Organizações saudáveis devem estimular as potencialidades de todos e qualquer um, e não diminuí-las. Nenhum de nós consegue ter uma plena percepção de quem é sozinho. Reconhecemos-nos melhor quando nos enxergamos nos olhos dos outros. Mas as organizações são, evidentemente, imperfeitas. Deixar os excessos de narcisismo de lado e admitir que somos, também, imperfeitos, ajuda.

Saiba mais: A defesa da Frente Ampla é uma tática “abraço de urso”

Não é possível ser socialista sem nos unirmos, politicamente, à construção coletiva de uma ferramenta útil para a luta pelo poder. A experiência de mais de cento e cinquenta anos de existência do movimento socialista já demonstrou de forma cruel, no laboratório da história, que nenhum direito, nenhuma reforma, nenhuma conquista é perene, sem a luta pelo poder. O capitalismo pode fazer, transitoriamente, concessões em situações extremas de pressão, mas elas serão sempre efêmeras. O maior desafio da militância em um coletivo é aprender a importância da disciplina. Não é simples e tem um custo.

Por último a quarta ruptura é a adesão a uma visão de mundo ideológico-programática, portanto, anti-imperialista e internacionalista. Ser socialista é ser consciente que todas as vitórias nacionais dentro das fronteiras de um país, mesmo que ela seja uma grande nação, estão ameaçadas pela ordem imperialista mundial. Esta é a principal lição do socialismo do século 20.

Mas isso não é possível, seriamente, sem reconhecer que sabemos pouco. Ser socialista não é possível sem adquirir hábitos de disciplina para o estudo. Essa decisão exige um compromisso permanente com a nossa autoeducação. Cada um de nós tem a sua história, o seu repertório, a sua cultura. Um socialista é um eterno e insatisfeito estudante. Em uma organização socialista os intelectuais profissionais devem ter a disposição de se transformar em ativistas, e os ativistas de se transformar em intelectuais populares.

Aprofunde-se: Autocrítica não diminui ninguém, engrandece

Finalmente, é preciso saber que as pessoas cansam. Ninguém tem forças inesgotáveis. Militar na primeira linha cansa mais. A vida é breve e a luta longa. Por isso, uma militância socialista exige a maturidade de saber, em cada etapa da vida, qual é o lugar de cada um de nós. E saber cuidar de si mesmo. A vida traz alegrias e frustrações. Não é difícil ficar prisioneiro de rancores, atribuindo aos outros a culpa pelas nossas dores. O ressentimento é uma paixão triste. Ser socialista é cultivar sempre o melhor de nossa humanidade.

Edição: Rodrigo Chagas