MEIO AMBIENTE

"As consequências são irreparáveis", diz indígena Terena sobre destruição do Pantanal

Com avanço do agronegócio na região, bioma registra recorde de queimadas e sofre com uso desenfreado de agrotóxicos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Foto do município de Corumbá, localizado na divisa entre Mato Grosso do Sul e Bolívia, o mais afetado pelos focos de incêndio (Imagem das queimadas em 2019) - Foto: Chico Ribeiro/Governo do MS

Apenas no primeiro semestre de 2020, houve um aumento de 530% nas queimadas registradas no Pantanal matogrossense, em comparação com o mesmo período do ano passado. Os dados são da organização não-governamental Instituto Centro de Vida (ICV).

Monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgado na semana passada também atestou o avanço sem precedentes do fogo em todo o bioma: entre janeiro e junho deste ano, foram 2.534 focos de incêndio, um aumento de 158% em relação a 2019. Este é o maior numero dos últimos 22 anos, quando o monitoramento começou a ser realizado pelo Instituto.

Na última sexta-feira (24), o MS decretou emergência ambiental. A medida, assinada pelo governador Reinaldo Azambuja (PSDB), tem validade de 180 dias e foi publicada em edição extra do Diário Oficial do Estado. O texto suspende os efeitos das autorizações ambientais de queimada controlada pelo mesmo período.

Embora fatores climáticos como falta de chuva, calor, tempo seco e ventos fortes tenham peso no alastramento das chamas, o Corpo de Bombeiros já declarou que alguns focos de incêndio são criminosos, assim como as queimadas que destruíram a Amazônia ano passado.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o indígena Leosmar Antônio, do Povo Terena, denuncia que a destruição do Pantanal é resultado da expansão do agronegócio na região. Originário da terra indígena Cachoeirinha, no município de Miranda, no Mato Grosso do Sul, Leosmar relata que o monocultivo de cana de açúcar e soja são cada vez mais frequentes nas paisagens pantaneiras.

Para além das queimadas usadas como técnica predatória por ruralistas e pecuaristas, o biólogo e integrante do Caianas (Coletivo Ambientalista Indígena de Ação para Natureza, Agroecologia e Sustentabilidade), afirma que o uso dos agrotóxicos traz impactos diretos para o meio ambiente e para o modo de vida tradicional.

“A intensificação das atividades do agronegócio, com alta aplicação de veneno, acaba trazendo efeitos diretos sobre territórios tradicionais e comunidades indígenas. Queremos manter a sustentabilidade territorial e ambiental de nossas terras, mas no limite dos nossos territórios já estão as fazendas, que, com os venenos, trazem consequências para a saúde, dificuldades para mantermos nosso sistema tradicional de plantio e poluem nossa água”, lamenta o indígena.

Segundo ele, a atuação do setor tem agravado até mesmo conflitos pelo uso da água na região, considera a maior planície inundada do mundo. Córregos que estão em territórios das comunidades tradicionais, por exemplo, e que dependem de nascentes das fazendas, estão a serviço apenas do agronegócio, decretando a escassez de água para a população local. 

Na opinião de Leosmar, o futuro dos povos tradicionais e do próprio bioma está ameaçado. “Nossa relação com Pantanal é ancestral, é histórica. Além do aspecto ambiental, tem uma questão cultural, cosmológica com o Pantanal. As consequências são irreparáveis quando vemos toda essa destruição”.

Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato - Como tem se dado essa atuação do agronegócio na região? É um processo que acontece há algum tempo ou tem se intensificado?

Leosmar Antonio Terena - É um processo que se intensificou sim nos últimos anos com a flexibilização de leis ambientais. Por exemplo, nós tivemos um decreto presidencial que abriu o Pantanal para o plantio de cana de açúcar. Então essas flexibilizações acabam sendo um incentivo para que o agronegócio avance mais. Somados a isso, temos os focos de incêndio que nesse ano foi o maior dos últimos vinte anos. Desde 1998, esse ano teve os maiores focos de incêndios no Pantanal.

Então esses incentivos que vêm do Estado brasileiro para a abertura do pantanal voltada à implementação de atividades agropecuárias de alto impacto ambiental, acaba desencadeando o aumento dos focos dessas queimadas.

O principal objetivo da derrubada das novas áreas sempre é para a implantação de novas atividades agropecuárias. Recentemente temos observado, indo para Corumbá, percebemos outras culturas que vêm sendo cultivadas em larga escala no Pantanal. Como a soja que até então não existia. Estamos percebendo o plantio do girassol. Culturas agrícolas que se sustentam, que tem sua base na aplicação intensa de venenos. 

Quais são as consequências do uso das substância para o bioma pantaneiro e pras comunidades da região?

Nós, principalmente as comunidades tradicionais que estão no Pantanal, sofremos impactos diretos da aplicação desses insumos agroquímicos. O Pantanal, normalmente, é conhecido apenas por essa planície alagada e pouco se percebe a presença de comunidades tradicionais e povos indígenas.

E aqui somos 9 povos indígenas diferentes e inúmeras comunidades tradicionais que dependem da biodiversidade pantaneira. Normalmente a percepção que se tem é que o Pantanal é uma grande área alagada e desconsideram essas pessoas que estão aqui, inclusive para manter a biodiversidade pantaneira.

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Muitas das fontes e das nascentes que abastecem esse território alagado estão em terras indígenas, em áreas de comunidades tradicionais que estão conservadas. Quando intensificam essas atividades do agronegócio com alta aplicação de veneno, acaba trazendo efeitos diretos sobre territórios tradicionais e comunidades indígenas. Então, queremos manter a sustentabilidade territorial e ambiental de nossas terras, mas no limite dos nossos territórios já estão as fazendas com alta aplicação de veneno. Que trazem consequências para a saúde, dificuldades para mantermos nosso sistema tradicional de plantio e poluem nossa água. 

Tem alguma região mais visada pelo setor, rio ou bacia, que consequentemente é mais afetada?

O Pantanal, em relação ao impacto dos agrotóxicos, é um bioma com poucos estudos. Mas há uma percepção que as águas do pantanal, os ciclos hidrográficos do Pantanal vêm se alterando muito ao longo dos últimos anos.

Essa percepção é tão evidente para os povos e comunidades tradicionais quanto para a ciência. Isso já é perceptível. Por exemplo: muitos córregos que estão em territórios de comunidades que dependem de fontes das nascentes que estão nas fazendas, muitas vezes essas nascentes estão a serviço do agronegócio e acabam refletindo na diminuição ou na escassez de água desses territórios. É uma percepção muito evidente para nós. A ciência também já vem trazendo que o Pantanal como um todo está diminuindo seu volume de água. 


Queimada em Corumbá (Foto: Corpo de Bombeiros)

Há uma intensificação dos conflitos pelo uso da água, então?

Com certeza. Nós, povos indígenas, eu sou pertencente ao povo Terena, temos uma ligação muito forte com o Pantanal. Faz parte da nossa origem. Quando vemos esse bioma ser devastado, destruído, é uma memória da nossa ancestralidade que se perde.

Nossa relação com Pantanal é ancestral. É nossa origem está na região no Chaco Paraguaio e aqui no Brasil é a região que faz parte do Chaco. Então, para gente, nossa relação é histórica. Além do aspecto ambiental, tem uma questão cultural, cosmológica com o Pantanal. As consequências são irreparáveis quando vemos toda essa destruição.

Há alguma articulação para proteger o Pantanal e tentar interromper o avanço do agronegócio, seja por parte dos povos ou dos órgãos públicos?

Temos algumas organizações não governamentais. A Ecoa é uma organização que está no Pantanal e desenvolve várias frentes de trabalho. Uma delas é com relação ao impacto dos agrotóxicos que é incipiente ainda. Esses estudos são recentes aqui no Pantanal porque pouco se olhou pra esse bioma durante muito tempo. 

Mas, tem outras organizações indígenas fazendo frente a um conjunto de iniciativas que buscam preservar fontes de águas pantaneiras, como a organização que eu pertenço, a Caianas. 


Na imagem, o indígena Leosmar ao lado do ancião Terena Izidório, na terra indígena Cachoeirinha, no município de Miranda (MS) / Foto: Arquivo Pessoal

Temos recorrido às instâncias jurídicas, ao Ministério Público Federal (MPF), fazendo denúncias de aplicação de veneno sobre comunidades tradicionais. Então o MPF vem se somando como parceiro mas temos também Comitês de Bacias Hidrográficas que também estão trabalhando essa parte hídrica no Pantanal, onde há representação de povos tradicionais, indígenas e pesquisadores de universidades. 

Então há sim muitas organizações não-governamentais, pesquisadores e várias instâncias jurídicas no Estado que vem nesse processo convergente pra tentar salvar o Pantanal e fazer denúncias. 

Avalia que há alguma preocupação com o Pantanal em nível federal ou somente essa resposta por parte do MPF por conta da demanda das populações?

Pois é. É muito difícil conseguirmos êxito com essas denúncias. A população indígena aqui no Mato Grosso do Sul é a terceira mais atingida por agrotóxicos no Brasil. Muitos desses venenos são aplicados em voos rasantes, de forma criminosa e intencional sobre comunidades indígenas e tradicionais. Nós, mesmo gravando vídeos dessa aplicação criminosa, levamos o MPF, mas temos um Estado brasileiro que escolhe um lado para defender.

O Ministério da Agricultura, por exemplo, emitiu até laudos favoráveis aos fazendeiros que fizeram a aplicação dizendo que eram denúncias improcedentes. Percebemos que nossa luta é também contra instâncias do Estado brasileiro que tem o seu lado. Que é o lado do agronegócio. Principalmente no governo Bolsonaro, isso fica cada vez mais evidente. 

A tendência é que essa destruição se intensifique, tendo em vista os recursos estratégicos do Pantanal? 

As perspectivas são as piores possíveis. Não temos nenhuma percepção que as coisas vão melhorar. Vemos o número de autorizações de novos insumos agroquímicos, de novos venenos, sendo aprovados cada vez mais. As agências de controle e de vigilância sanitária estão sendo aparelhadas. Existe um aparelhamento para que se flexibilize e cada vez mais autorizem novos venenos. 

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Do Estado brasileiro, não temos percepção que as coisas vão melhorar. O que estamos fazendo é nos articular localmente, na base, nos unindo a outras organizações, outros movimentos sociais. Às instâncias jurídicas que tenham sensibilidade para acatar e absorver esse tipo de denúncia. Até porque quando acontece uma intoxicação por agrotóxico, por exemplo, essa pessoa procura um posto de saúde com sintomas de vômito, ânsia, febre, diarreia. E aí o médico receita medicamentos para combater esses sintomas mas não se faz uma pesquisa, uma busca mais profunda da causa de todos esses sintomas que geralmente estão na intoxicação por agrotóxico.

Tem casos de crianças que foram afetadas diretamente. Anciãos que sofrem consequências diretas. É um cenário muito difícil. Existem várias legislações, decretos governamentais, que vem fazendo essa abertura. O que nos resta é fazer essa articulação, união de vários movimentos, universidades que também têm pessoas sensibilizadas com a questão do Pantanal, e se juntarem. Fazer frente para impedir esse processo de degradação do Pantanal que vem se acirrando cada vez mais. 


Os incêndios já destruíram 300 mil hectares de vegetação nativa na cidade de Corumbá, de acordo com o PrevFogo/Ibama / Divulgação/Portal do Governo de Mato Grosso do Sul

Parece que o setor do agronegócio, os grandes latifundiários, não perceberam que o potencial das atividades agrícolas, da pecuária, só se sustentam porque existe a biodiversidade do Pantanal. Porque existe água. A partir do momento que as fontes de água, os povos tradicionais e indígenas que estão nesse bioma desaparecerem, não tem nenhuma atividade que se mantenha. O próprio agronegócio não vai se sustentar sem as fontes de águas do Pantanal. Se não tiver essa percepção o quanto antes, nem o agronegócio vai se sustentar sem esse território alagado. 

Edição: Ítalo Piva