Rio Grande do Sul

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Aí vem a segunda onda

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"Nas crises sempre ocorrem interações de efeitos. Os danos são ampliados para aqueles em situação de iniquidade social, submetidos a estresses econômicos, nutricionais, psicossociais" - Divulgação/Senasa
Novas crises, novas nuvens de gafanhotos, reais e metafóricas, estão a caminho

Quantas crises se abatem sobre nosso Estado... parece uma onda. O governador que não prometia nada, seguido pelo governador que faz sorrisos de apoio ao presidente que não tem ideia alguma sobre seu papel e consolida, no executivo, o mau exemplo das mentiras sucessivas, orientadas pelo zigue-zague da confusão que envergonha a todos. A covid e os gafanhotos, a poluição dos 300 projetos de mineração... Cabe aqui a palavra “sindemia”. Nas crises sempre ocorrem interações de efeitos. Os danos são ampliados para aqueles em situação de iniquidade social, submetidos a estresses econômicos, nutricionais, psicossociais. Estamos na mesma tempestade, mas nem todos têm onde se agarrar, que dirá acesso a barcos de salvação. Isso destaca a importância e a responsabilidade do poder público.

Em outras palavras, o enfrentamento das crises, como uma junção de dramas independentes induz a ações isoladas que sempre resultarão insuficientes. O contexto deve ser avaliado levando em conta fatores causais e implicações agregadas... Sindemias exigem ações integradas, tendo em conta a transversalidade de alicerces de caráter sistêmico, como as questões da agroecologia e da política.

Vejamos a forte correlação entre as crises que vivemos no RS. É fácil perceber o quanto uma delas reforça e quão bem cada uma permite construir metáforas que ajudam na compreensão das demais.

Pouco adianta ampliar o número de leitos para covid, porque o inverno gaúcho os tornará insuficientes. Nada adianta torcer para que o governador e o presidente se orientem pelos direitos humanos fundamentais. Também não adianta jogar veneno sobre os gafanhotos. O ecocídio, como o genocídio e o “politicídio”, apenas ampliarão nossos problemas.

Precisamos de outras soluções. Precisamos ter em conta problemas fundamentais, que se revelam nestas crises. A vida e a sociedade respondem positivamente à biodiversidade e a solidariedade é o caminho para o fortalecimento de todos.

Vejamos o caso dos gafanhotos, para fins ilustrativos. Em princípio, eles vêm, comem, fazem seu estrago, e vão embora. Como alguns políticos, como algumas doenças. Restaria aos gaúchos recuperar os estragos, tendo em vista, desde sempre, que eles poderiam ter sido evitados, que eles respondem a processos recursivos (poderão voltar) e que sempre há o que ser feito, para reduzir ou ampliar os danos, antes de sua ocorrência...

Os gafanhotos. De onde vêm, como se movimentam, qual seu objetivo e destino? O que explica seu comportamento, as ameaças que causam e as reações que motivam? Precisamos refletir sobre isso. E precisamos da ajuda de biólogos, entomologistas, ecologistas, estudiosos que contribuam para orientar as ações do interesse da maioria. A imprensa fala em disponibilidade de 400 aviões e mais de meio milhão de reais para uso de venenos, incluindo alguns até aqui proibidos no estado, como solução. A quem interesse esta solução? O que pensam, sobre ela, aqueles estudiosos?

E os gafanhotos, o que querem? Sabemos que as fêmeas dos gafanhotos colocam mais de 200 ovos. De cada 100, em condições normais, menos de três atingem a idade adulta. Pássaros, lagartos, sapos, tatus, preás, raposas, cachorros do mato, comem a maioria. Outros tantos morrem em função da temperatura. As poucas fêmeas que cumprem o ciclo e atingem a idade adulta, colocarão seus 200 a 300 ovos, que dependerão do ambiente para completar o ciclo. Se o agronegócio, com suas limpezas de solos, com seus agrotóxicos, com a derrubada de matos e extinção de fontes, acabar com aquela biofauna, e se o tempo ajudar, teremos perto de 100% da prole cumprindo o ciclo. Algumas rodadas, e eles chegam a 400 milhões. Daí, abandonam a área em comportamento coletivo explicado pela pressão populacional e viabilizado pelas características próprias dos gafanhotos, que cientistas do ramo poderiam explicar.

O RS, que em função do vento, do clima, se percebe na rota da nuvem, fará o que? O Secretário da Agricultura, Covatti Filho, de tradicional família politicamente alinhada ao agronegócio biocida, chegou rápido a uma solução coerente com a história de seu grupo político. Vai mobilizar frota monumental de aviões e jogar veneno nos gafanhotos e em tudo que estiver abaixo deles, ou para os lados até onde a deriva alcançar.

Pessoas contaminadas, águas contaminadas, pássaros, peixes, animais que comerem os gafanhotos envenenados, nada disso importa, há que salvar a vegetação ameaçada pelos insetos.

Aliás, o ecocídio importa menos do que a presença de veneno na urina das crianças, no leite que as mães dão no peito a seus filhos, na maior suscetibilidade de todos afetados pelo veneno, às pressões da covid. Como tudo isso não vale nada, entende-se que jogar veneno nos gafanhotos vale menos ainda.

O que poderia ser feito, numa abordagem sindêmica? Numa visão de base agroecologica?

Ora, assim como nós, todos os seres vivos respondem a estímulos de atração e repulsão. É isto que explica a migração de insetos, mesmo daqueles que fugindo das lavouras transgênicas infestam os lotes de agricultores que produzem alimentos sadios, que não usam venenos. É isto que explica a existência do centrão e o troca-troca de partidos, por parte de tantos políticos guiados por seus indutores de movimentação...

O que poderia ser feito para atrair aquela nuvem de gafanhotos? Para inibir seu voo e induzi-los a pousar? Óleo, água, fumaça, barulho, agrotóxicos? Os entomólogos, os biólogos, os ecologistas, os vendedores de veneno podem ajudar a responder isso. Certamente o veneno, jogado de avião, é uma alternativa. A mais simples, a mais tola, a mais inadequada, a mais rentável para alguns e a mais fácil para outros, que preferem terceirizar problemas. É a famosa solução fácil para problemas complexos. Parece que funciona, não vai além disso. Quando diante de problemas relacionais complexos esquecemos o conceito de sindemia, alimentamos problemas futuros. Via de regra, para os outros, o que explica a popularidade deste tipo de “solução”.

Os ovos dos gafanhotos que não morrerem com a chuva de veneno, eclodirão em ambiente sem controles naturais. Se o tempo ajudar, sabemos o que ocorrerá no futuro. O secretário não parece interessado em refletir obre isso, em buscar alternativas ao veneno. De pronto, prefere o pior. Parece o presidente.

A agroecologia recomenda que se busque um meio de estressar a nuvem, induzindo-a a pousar. No chão, peixes, galinhas, patos, catação e até pisoteios, podem resolver o problema. O secretário pode inclusive aproveitar anúncios da FAO e praticas populares na Índia, no México, no continente Africano, na Austrália, sugerindo que eles sejam consumidos. A proteína é de qualidade e, torrados, desde que sem venenos, são ótimos como aperitivo.

Talvez se possa escolher o local do pouso forçado, levando em conta os hábitos, a direção do vento e o ritmo de voo, e planejar ações de controle prevendo indenização aos proprietários das áreas prejudicadas. Aliás, esta, como as outras crises, são cada vez mais percebidas pelos gaúchos como algo sob a responsabilidade de todos. Aí estaria um bom uso para o dinheiro que o governo estima gastar em sua operação veneno para todos.

Mas isso não basta. Precisamos de um poder público induzido a refletir em perspectiva ecológica, de longo prazo. Precisamos estabelecer acordos com os povos do Uruguai, da Argentina, do Paraguai. Todos estamos ameaçados pelos impactos negativos do agronegócio ecocida. Juntos, podemos agir sobre as causas de crises comuns, como esta dos gafanhotos. Podemos superar desequilíbrios ambientais que permitem a explosão populacional e o avanço devastador de nuvens de gafanhotos, por toda esta pátria "sojeira".

Precisamos evitar crises futuras e para isso há que aplicar uma mesma perspectiva ao fortalecimento dos partidos políticos “de verdade” e dos sistemas imunológicos das populações excluídas. E a eliminação de realidade perversa, onde mães bebem água contaminada e envenenam seus bebês, ao peito.

Isso implica, certamente, em alterar este quadro político dominado por atores incapazes de se sensibilizar com a situação de milhões de famílias submetidas a iniquidades. E olhar o futuro como consequência do presente que é de responsabilidade comum.

Novas crises, novas nuvens de gafanhotos, reais e metafóricas, estão a caminho. Precisamos discutir isso e agir de acordo com que se mostrar melhor para todos. Voltaremos a esta discussão em outro artigo.


Estão todas e todos convidados a acompanhar o programa “Arte, Ciência e Ética”, na Rede Soberania e Brasil de Fato RS, dia 30 de julho, às 17 horas, quando voltaremos a este tema com participação do médico e professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) Wanderlei Pignati. Recomenda-se também o acesso ao primeiro programa da série “Arte, Ciência e Ética”, com a socióloga e professora da PUC-SP Marijane Lisboa.

Edição: Marcelo Ferreira