Coluna

Índia e Brasil: a incompetência perigosa de Modi e Bolsonaro

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Tradução: Dafne Melo

Arpita Singh-India My Mother-1993. - Reprodução
Nem no Brasil nem na Índia os governos adotaram ações baseadas em evidências científicas

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Notícias alarmantes sobre a covid-19 vêm do Brasil e da Índia, onde os números de infecções estão altos e a contagem de mortes cresce constantemente. Cerca de um milhão de pessoas estão infectadas no Brasil (população de 211 milhões). Na Índia, é difícil estimar o número de pessoas infectadas, já que as testagens são muito baixas e os dados muito ruins. Uma estimativa é que pelo menos oito milhões de pessoas tenham sido infectadas (em uma população de 1,3 bilhão).


Camila Soato, Ocupar e Resistir, Brasil 2017 / Reprodução

No início de junho, o Ministério da Saúde, no Brasil, retirou o site do ar por um dia; a página publicava os dados oficiais da pandemia no país. Quando voltou no dia seguinte, todos os dados de casos anteriores da doença haviam desaparecido; simplesmente não havia como avaliar números oficiais sobre taxas de infecção ou mortalidade. A oposição criticou o governo e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, afirmou via Twitter que “o Ministério da Saúde tapa o sol com a peneira. É urgente resgatar a credibilidade das estatísticas. Um ministério que tortura números cria um mundo paralelo para não enfrentar a realidade dos fatos”.

Foi necessária a intervenção do Supremo Tribunal Federal para que os dados fossem restaurados. Durante a conferência de imprensa da Organização Mundial da Saúde (OMS) no dia 19 de junho, Michael Ryan, diretor executivo do Programa de Emergências em Saúde da OMS, disse que nas últimas 24 horas havia mais de 22 mil pessoas infectadas no Brasil e 1230 mortes a mais .

Índia

Enquanto isso, a revista do Conselho Indiano de Pesquisa Médica mostrou que o relatório oficial do governo sobre infecções no país até o início de maio (35 mil) subestima o número real de infecções (700 mil) em pelo menos vinte vezes. Os números oficiais do governo informam que 400 mil pessoas foram infectadas no país até junho, mas o número pode chegar a oito milhões se multiplicarmos o número oficial por vinte (seguindo a estimativa do Conselho Indiano de Pesquisa Médica).

A contagem oficial de mortes é de 13 mil, o que não é crível. Uma das descobertas imediatas do estudo do Conselho é que o governo não realizou nenhum rastreamento de contatos com seriedade. Das pessoas cujos testes deram positivo para covid-19 no estudo, o governo indiano não sabe como 44% delas foram infectadas.


Lygia Clark (Brazil), Nostalgia do corpo, 1964. / Reprodução

Desprezo pela ciência

Nem no Brasil nem na Índia os governos adotaram ações baseadas em evidências científicas. No Brasil, o governo dispensou dois ministros médicos – Luiz Henrique Mandetta (ortopedista pediátrico) e depois seu substituto, Nelson Teich (oncologista) – e os substituiu por Eduardo Pazuello, militar que não é da área da saúde. Parece que nenhum médico quer se juntar ao governo e promover as opções favoritas de Bolsonaro, que não tolera evidências científicas que contradigam sua agenda política, como ficou evidente com a demissão de Mandetta.

Como o presidente dos EUA, Donald Trump, Bolsonaro se alçou a profissional de saúde, instando seu ministério a incentivar o uso de cloroquina e hidroxicloroquina como antídoto para a doença. O fato é que, na semana passada, a OMS retirou novamente a hidroxicloroquina de seu Estudo de Solidariedade após a droga não mostrar benefício (além de causar problemas cardíacos em alguns pacientes, entre outros efeitos colaterais adversos); o Food and Drug Administration (FDA), nos EUA, revogou a autorização do uso emergencial do remédio no tratamento da doença na segunda-feira, 15 de junho; no sábado passado, os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA interromperam uma avaliação sobre a capacidade do medicamento em tratar a covid-19.

Na Índia, o primeiro-ministro Narendra Modi promoveu a atmanirbhar (autossuficiência), pedindo às pessoas que tomem medidas por conta própria para enfrentar o vírus. O governo federal, ao que parece, não fará nada nem se responsabilizará. Os recursos médicos foram drenados dos sistemas públicos de saúde para os privados nas últimas décadas, o que tem sido duro para os infectados pelo vírus. Hospitais e clínicas particulares estão recusando pacientes que necessitam do uso de ventiladores e oxigênio; esses pacientes são em grande parte da classe média, o que significa que a situação dos trabalhadores é desconhecida.


Wilcker Morais (Brasil), Capitalismo na Crise do Corona, 2020 / Reprodução

Desde o final de 2016, quando a direita voltou ao poder após a retirada antidemocrática de Dilma Rousseff da presidência, em um “golpe brando”, o Estado brasileiro atingiu o sistema de saúde com cortes severos. A Emenda Constitucional 95 (dezembro de 2016), ou EC-95, entrou em vigor em 2018 e congelou o orçamento federal por vinte anos, o que teve um impacto desastroso no Sistema Único de Saúde (SUS).

Prevendo o futuro, a professora Liana Cirne Lins escreveu na época em que a emenda foi aprovada que a EC-95 “não é um medicamento amargo. É a doença que colocará o país inteiro na UTI”. Em 2017, o governo – pela primeira vez em 30 anos – desembolsou menos do que o exigido pela Constituição para o orçamento da saúde.

Além disso, fomentou convênios privados de baixo custo para minar o SUS. As obrigações legais dos Estados e municípios para investir recursos em cuidados primários de saúde e saneamento foram enfraquecidas, o que significou o desgaste do Sistema. A austeridade, em pouco tempo, corroeu a capacidade da saúde pública no Brasil, que tem um dos mais fortes sistemas de saúde pública do mundo – resultado de duras lutas sociais .

Quando Modi assumiu o cargo em 2013, seu governo reduziu o orçamento da saúde em 20% (aumentaram posteriormente a cada ano). Hoje, a Índia dedica uma quantia minúscula (1,15%) de seu PIB para a área, com a maior quantia destinada ao setor privado. O National Health Profile, um documento divulgado pelo governo da Índia em 2019, mostrou que existe um médico para cada 10.926 pessoas; dez vezes menor que a recomendação da OMS de 1 médico para cada 1000 pessoas.

Os custos com saúde na Índia são escandalosos, sendo proporcionalmente um dos mais caros do mundo (leia nosso dossiê n.25). Mesmo antes do surgimento do coronavírus, 57 milhões de indianos se endividam todos os anos por conta do alto custo médico. O programa de seguro saúde do governo (Ayushman Bharat-Pradhan Mantri Jan Arogya Yojana) foi afetado por fraudes e ineficiência. A Missão Nacional de Saúde, um importante programa de saúde pública do governo indiano, viu seu orçamento cair desde 2014. Esse declínio acentuado começou quando o governo de extrema-direita de Modi chegou ao poder em 2013. O impacto é catastrófico.


FN Souza (India), Tycoon and the Tramp [O Magnata e o Andarilho], 1956 / Reprodução

Desprezo pelo povo marca a perigosa incompetência dos governos de Bolsonaro e Modi. A atitude descuidada de Bolsonaro em relação à natureza altamente contagiosa do vírus fez com que não houvesse uma quarentena bem planejada no país; quando Bolsonaro começou a fazer campanha para reabrir completamente o país, o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, acusou-o de brincar de “roleta russa” com a população.

 

 

Em 24 de março, duas semanas após a OMS declarar a pandemia global, Modi anunciou subitamente um isolamento de três semanas. Nada foi dito por dois dias e, mesmo assim, o “plano” introduzido não tinha detalhes específicos. Dois dias antes do bloqueio, o Ministério Ferroviário suspendeu todos os trens de passageiros; os ônibus pararam de funcionar. Esse foi o começo de um conjunto catastrófico de eventos. Dezenas de milhões de trabalhadores indianos se deslocaram de suas vilas e cidades para procurar trabalho em outras partes do país. Muitos deles são trabalhadores diaristas, com pouco acesso à poupanças e geralmente têm hospedagem apenas se estiverem trabalhando.

Sem aviso prévio, foram informados de que não tinham mais moradia nem como se locomoverem e tinham que caminhar centenas de quilômetros até suas casas. A vida na Índia rural foi afetada negativamente por um bloqueio imposto sem nenhum planejamento – como mostram os estudos realizados pelo People’s Archive of Rural India [Arquivo Popular da Índia Rural] e pela Society for Social and Economic Research [Sociedade para Pesquisa Social e Econômica].

A raiva nos dois países tem crescido. Sob a proteção do isolamento, esses governos tentaram avançar com o pior de sua agenda impopular – ataques aos direitos trabalhistas, privatização da saúde e medidas severas de austeridade. No Brasil, a palavra de ordem da vez é Fora Bolsonaro. Palavras que ressoam na Índia, onde os partidos de esquerda têm pressionado o governo Modi e suas políticas que prejudicaram bastante a população. O crescente descontentamento com governos de homens como Bolsonaro e Modi é um sinal de esperança.


Nagarjun, 1911-1998 / Reprodução

Todas as coisas devem passar. Até a pandemia e até a perigosa incompetência de Bolsonaro e Modi. Em 1952, o poeta hindu Nagarjun (1911-1998) escreveu um poema comovente sobre a fome intitulado Fome e o que vem depois. Isso nos dá o tipo de esperança de que precisamos quando a luz no fim do túnel pisca e parece – por vezes – ter apagado.

 

Por dias a fio a lareira chorou, a pedra de moinho ficou abandonada.

Por dias a fio, o cão caolho dormiu ao lado deles.

Por dias a fio, os lagartos mantiveram uma vigília na parede.

Por dias a fio, até os ratos foram derrotados.

Os grãos chegaram à casa depois de muitos dias.

A fumaça subiu acima do pátio depois de muitos dias.

Os olhos da família brilhavam depois de muitos dias.

O corvo negro limpou suas penas depois de muitos dias.

Já estão abertas as inscrições para o segundo ciclo da Exposição de cartazes anti-imperialistas. O tema é neoliberalismo. Em nossa entrevista ao pintor equatoriano Pavel Égüez, ele nos lembra que “movimentos sociais constroem uma tese para o futuro”, e as ideias e reivindicações que emergem dos movimentos são o que pode “potencializar a arte”. Juntamente com a Semana Internacional da Luta Anti-Imperialista, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social está pedindo aos artistas que dêem uma voz visual às lutas populares. As inscrições devem ser feitas até dia 16 de julho e você pode ver a primeira exposição online, com o tema Capitalismo, aqui. Compartilhe essa convocatória para a arte.

No Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, estamos investigando o coronavírus e seu impacto no mundo. Você pode encontrar essas publicações em nosso site (mais publicações serão feitas em breve). Reunimos aqui algumas já publicadas:

Dossiê n. 28: CoronaChoque: um vírus e o mundo

Dossiê n. 29: Saúde é uma escolha política

Estudo CoronaChoque n. 1: China e CoronaChoque

Estudo CoronaChoque n. 2: CoronaChoque e a guerra híbrida contra a Venezuela

Alerta vermelho n. 7: Fatos essenciais sobre o novo coronavírus e a covid-19

Depois de muitos dias, as nuvens se dissiparão, o sol brilhará e a humanidade será capaz de transcender a perigosa incompetência do neofascismo.

Cordialmente,

Vijay.

Edição: Ítalo Piva e Rodrigo Durão Coelho