Rio Grande do Sul

Violência

Um vírus e duas guerras: feminicídios aumentam na quarentena no Rio Grande do Sul

De acordo com monitoramento, RS é o 4º Estado do Brasil com mais feminicídios entre janeiro e abril de 2020

Catarinas |
Especial do portal Catarinas, Um vírus e duas guerras: traz um retrato da violência contra a mulher no estado do RS - Felipe Carneiro

“Maria Elizabeth era uma mulher forte e determinada e pelos poucos meses que esteve à frente da AGERGS, teve uma grandiosa e significante passagem com determinação e muitos planos de efetividade para a Agência e para o Estado do Rio Grande do Sul”, diz a nota de pesar emitida pela Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (AGERGS).

Maria Elizabeth Rosa Pereira, 65 anos, mãe, advogada, técnica tributária aposentada e presidenta da AGERGS estampou as notícias dos jornais do Rio Grande do Sul no mês de abril. Morta, no dia 17 do mesmo mês, com um tiro nas costas na casa do companheiro, o policial militar (PM) da reserva José Pedro da Rocha Tavares. O PM virou réu, no início de junho, após o Judiciário aceitar a denúncia por feminicídio – ou seja, homicídio em contexto de violência doméstica familiar ou menosprezo e discriminação à condição de mulher – realizada pelo Ministério Público.

Maria Elizabeth é uma das 21 mulheres que tiveram o feminicídio consumado no Rio Grande do Sul, durante o período de isolamento em decorrência da pandemia de Covid-19. Entre os meses de março e abril de 2020, o Estado teve um aumento de 23,5% da mortalidade de mulheres em comparação ao mesmo período no ano de 2019. Se comparado aos quatros primeiros meses de 2019, o Rio Grande do Sul teve um aumento de 71% dos casos de feminicídio em 2020. Enquanto em janeiro, fevereiro, março e abril de 2019 foram 21 casos; em 2020 foram 36. Os dados são da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP/RS).  


Enquanto em janeiro, fevereiro, março e abril de 2019 foram 21 casos; em 2020 foram 36 / Divulgação Catarinas

De acordo com Ariane Leitão, advogada e coordenadora da Força-Tarefa de Combate aos Feminicídios no RS, o aumento da taxa de mortalidade feminina é um forte indício de que as estatísticas relativas aos demais crimes de violência doméstica familiar contra as mulheres no Estado, durante a quarentena, não retratam a realidade. Isto é, as denúncias registradas são menores que os casos cotidianos. “Temos certeza de que estão subnotificados. O feminicídio é o ápice do ciclo de violência contra as mulheres”, afirma.

Enquanto os números de feminicídio aumentaram durante a pandemia, em relação aos meses de março e abril de 2019, os demais indicadores diminuíram no mesmo intervalo de tempo em 2020. As ameaças caíram de 6.542 para 4.789 (-25,8%). As lesões corporais passaram de 3.668 para 3.058 (-16,7). Os estupros reduziram de 233 para 212 (-9,1%). As tentativas de feminicídio atenuaram de 62 para 42 (-32,3%).

“Quando olhamos os dados, os índices que tiveram queda são os menos graves. No caso da ameaça, por exemplo, muitas vezes a mulher pensa que é melhor deixar passar. Agora, os crimes mais graves que não têm como serem acobertados, como o feminicídio, aumentaram. É preciso que as mulheres e toda a sociedade entendam que todos os crimes precisam ser denunciados”, explica Tatiana Bastos, delegada titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM) do Rio Grande do Sul.

A delegada também ressalta que a subnotificação é um problema anterior à Covid-19 agravado no contexto da pandemia. “A subnotificação já é a tônica na questão da violência doméstica, temos estudos que demonstram que 90% das mulheres não denunciam. No caso da pandemia, com aumento da convivência familiar, muitas mulheres estão confinadas com seus agressores o que agrava a subnotificação”, afirma.

O desafio da subnotificação e dos dados 

Durante esta investigação, duas realidades tiveram mais destaque tanto nas falas das entrevistadas, quanto na compilação das estatísticas sobre a violência doméstica e familiar contra mulher no Rio Grande do Sul: a subnotificação e a inconsistência dos dados. Delegada, advogadas, pesquisadoras, ativistas, todas foram categóricas: as estatísticas de agressões, estupros, mortes, denúncias e medidas protetivas não representam a realidade. Ou seja, o quadro que já é ruim, no cotidiano, é ainda pior.

Raíssa Jeanine Nothaft, doutora em Ciências Humanas e pesquisadora no Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Saúde, Sexualidades e Relações de Gênero, explica que um grande entrave para prevenção e combate da violência doméstica e familiar contra as mulheres é a cultura patriarcal que naturaliza relações de domínio e abuso entre homens e mulheres.

“Por existir uma cultura de naturalização da violência, as ameaças, as violências psicológicas ocorrem antes do crime de feminicídio, mas não são denunciadas. Por não terem sido consideradas como violência, não são notificadas”, pontua Raíssa Jeanine Nothaft, pesquisadora e doutora em Ciências Humanas.

Uma questão levantada pela pesquisadora é a importância de compreender que embora o fenômeno da violência doméstica afete mulheres negras, indígenas, brancas, heterossexuais, lésbicas, pobres, ricas, entre outras, a maneira como atinge cada mulher se dá diferente de acordo com esses marcadores sociais de raça, etnia, classe e orientação sexual. No caso da população negra, por exemplo, Raíssa pontua que o racismo que estrutura a violência policial  é um fato que dificulta a relação de confiança entre a polícia e as mulheres negras em situação de violência doméstica. 

“A lei Maria da Penha é uma legislação bastante ampla que prevê medidas protetivas, assistenciais e punitivas, mas se pensamos o histórico da implementação da lei o que tem sido privilegiado é a dimensão punitiva. Dentro de estudos que falam sobre encarceramento, sobre violência policial, existe uma política racista de segregação e genocídio da população negra empreendida por essas políticas de segurança pública. A ferramenta de proteção das mulheres em situação de violência no Brasil, que tem uma maioria de população negra, é a mesma que oprime essas mesmas mulheres. É muito contraditório. Como essa mulher negra que vê seu filho morto pela polícia vai confiar?”, questiona. 

A falta de preparo para acolhimento da polícia também é apontada pela pesquisadora como um fator que agrava a subnotificação. “Para mim, é uma das principais causas que levam a subnotificação. Existe essa falta de confiança na polícia como uma instituição que possa ajudar e proteger as mulheres. E isso também tem relação com gênero uma vez que a polícia é uma instituição muito machista. Estudos relatam que muitas mulheres não conseguem registrar a ocorrência, elas são desencorajadas quando chegam nas delegacias: a questão não é de polícia, dizem, ou promovem revitimização da mulher questionando: Por que que tu tá fazendo denúncia? Amanhã tu vais estar de volta com ele”, ressalta.


"Estudos relatam que muitas mulheres não conseguem registrar a ocorrência, elas são desencorajadas quando chegam nas delegacias", aponta Raíssa / Felipe Carneiro

Sobre a inconsistência dos dados, além da subnotificação que não permite números precisos, há também desafios na tabulação. Durante o levantamento para esta reportagem, embora, majoritariamente, as instituições no Rio Grande do Sul tenham compartilhado os dados com eficácia e rapidez, não foi possível coletar as estatísticas do 190 – número de telefone da Polícia Militar, disponível 24h por dia em todo o território nacional, que é uma das principais portas de entrada para pedido de socorro ou denúncia de alguma agressão envolvendo violência doméstica. Através da assessoria da Secretaria de Segurança Pública do RS, descobrimos que não havia um filtro específico que permita qualificar os atendimentos relativos à violência doméstica no sistema da Brigada Militar.

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, após 14 anos da criação da lei Maria da Penha,  as polícias militares de vários Estados ainda registram casos de violência doméstica sob a nomenclatura “desinteligência” (utilizada para classificar episódios que entendem não serem problemas de polícia) e “brigas de marido e mulher”.

A falta de confiabilidade nos dados é um problema histórico apontado pelo movimento feminista no Brasil. Renata Jardim, advogada e coordenadora de programas na ONG Themis, acrescenta que além do problema de transparência, a falta de cruzamento dos dados também prejudica uma compreensão do fenômeno da violência. 

“Não se cruzam os dados (saúde, judiciário, secretaria de segurança pública, centros de referência, casas-abrigo). A qualificação dos dados já era uma demanda anterior do movimento feminista para formulação de políticas públicas mais efetivas. No contexto de pandemia, o levantamento desses dados deveria ser mais rigoroso ainda. Mas o que temos, com as várias possíveis entradas de denúncias e pedidos de ajuda, são dados diferentes que não dialogam e se contradizem”, explica Renata. 

Mesmo subnotificados os dados são alarmantes. As ocorrências registradas revelam que 78 mulheres foram ameaçadas, 50 agredidas fisicamente e três estupradas por dia, em dois meses de pandemia. Isso significa que, no Rio Grande do Sul, a cada uma hora cinco mulheres sofrem alguma forma de violência.


As ocorrências registradas revelam que 78 mulheres foram ameaçadas, 50 agredidas fisicamente e três estupradas por dia, em dois meses de pandemia / Divulgação Catarinas

O ciclo da violência: Entre o romance e o domínio 

Laudelina*, mãe e mulher preta, foi embora de casa fugida durante a pandemia do coronavírus, depois de dois anos de casada e várias agressões acumuladas. Laudelina, assim como tantas mulheres, viveu a narrativa da canção de Chico Buarque “A história de Lily Braun”. Como num romance, o homem dos sonhos apareceu, com dez poemas e um buquê. E, após a conquista, nunca mais feliz. A cultura patriarcal de domínio dos homens sobre as mulheres representada através da vida de Laudelina e de tantas outras violentadas dentro de suas próprias casas.

Laudelina conta que a primeira agressão foi uma desagradável surpresa. “Eu não acreditava que estava passando por aquilo”, repete várias vezes indignada. A violência veio após o ex-marido descobrir que a companheira separava itens alimentícios da compra de mercado para entregar para a mãe. “Eu sempre ajudei em casa”, relata. No meio da discussão sobre o fato, ele a levantou pelo pescoço. Depois vieram os pedidos de desculpa, não ocorreria mais. Ocorreu. E, então, vieram as humilhações, os chutes, os xingamentos, outras ofensas e o afastamento de Laudelina de amigos e outros familiares. A mulher nunca denunciou o ex-marido.

“Sempre achei que como mentia, levando as comidas (para a mãe), era meu castigo apanhar”, Laudelina.

“Eu sempre acabava me culpando de algo e acreditando que eu merecia aquilo ali, porque os homens agressivos te colocam em uma situação que tu foi a culpada deles brigarem, como se fossem tua mãe te punindo por uma arte…”, lamenta Laudelina.

O rompimento com o agressor ocorreu quando a comadre de Laudelina precisou se fixar durante o isolamento em sua casa. A amiga presenciava os abusos e aconselhava Laudelina. Até que um dia, o ex-marido avisou Laudelina que não queria mais a amiga dentro de casa pela má influência: a comadre estava afastando Laudelina dele. Após uma discussão entre o casal, o ex-marido gravou um vídeo ofendendo a comadre de Laudelina e enviou para grupos de WhatsApp.

“Ou eu continuava casada, ou perdia a única amiga que me restava. Perdi minha essência idolatrando um homem que me maltratava por ele ser bonito. Achava normal e não via quando ele me dizia que eu era nega véia, um bagulho. Quando fazia brincadeiras agressivas na frente das pessoas próximas, como: vou te quebrar o pau. E eu achava engraçado, até que comecei a notar que estavam sendo repetitivas”, relata.

Felizmente, Laudelina sobreviveu. Diferente de Jocemara, Quelem, Maria Elizabeth e Andiara, todas elas vítimas de  feminicídio durante a pandemia. Suas histórias, cujo ex-companheiros são majoritariamente os principais suspeitos, estamparam as manchetes dos jornais. Suas mortes viraram estatísticas. Em abril, com o aumento de 66% de feminicídios, em comparação ao mesmo mês em 2019, o Observatório da Segurança Pública e o Departamento de Inteligência da SSP do Rio Grande do Sul fez uma análise dos casos: nenhuma das 10 vítimas tinha qualquer registro de ocorrência anterior contra seus agressores. Porém, era de conhecimento dos familiares e amigos comportamentos abusivos nas relações.

Faltam políticas públicas e serviço estruturado no Rio Grande do Sul 

De acordo com Tatiana Bastos, assim que o isolamento foi decretado pelo governador do Estado, políticas que facilitam as denúncias de casos de violência doméstica foram aplicadas. “Passamos a adotar canais de denúncia e registro alternativo. Desde o dia 20 de março há possibilidade de fazer registro online. Os boletins de ocorrência já existiam no site da polícia civil, mas não havia como fazer o de violência doméstica e familiar contra mulher. Todo tipo de ocorrência é possível que seja feito na Delegacia Online, inclusive a medida protetiva. Também tem a possibilidade do uso do WhatsApp e do Disque Denúncia”, explica.

Além dos canais, a Polícia Civil do Rio Grande do Sul iniciou, na DEAM de Porto Alegre, atendimento psicológico online para vítimas de violência doméstica e lançou a “Cartilha da Delegacia Online” – que ensina passo a passo como as mulheres em situação de violência doméstica podem registrar ocorrência na Delegacia Online.


Centrais de atendimento / Divulgação

Apesar das ações pontuais relacionadas ao combate da violência doméstica contra mulher durante a pandemia de Covid-19, as medidas tomadas pelo governo estão longe de contemplar as indicadas pela Organização das Nações Unidas (ONU). A ausência de políticas de abrigamento, por exemplo, é denunciada por Télia Negrão, Conselheira Diretora da Rede Feminista de Saúde e da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC). “As casas-abrigo deixaram de receber pessoas novas. Recentemente, entrei em contato com duas coordenadoras para averiguar e haviam reduzido para 1/3 da capacidade de abrigamento por questões de segurança sanitária. Como não existem protocolos específicos diminuíram a capacidade de atendimento no período que as mulheres mais precisam”, afirma. Sem políticas de abrigo do Estado, as mulheres que conseguirem denunciar, caso não possuam uma rede de familiares ou amigos que as acolham, não terão para onde ir. Atualmente, o Rio Grande do Sul tem apenas 14 casas-abrigo para todo o Estado. 

Ariane Leitão chama atenção para o fato de que na pandemia a Rede de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência não está funcionando. Isto é, ações e serviços públicos das áreas da saúde, da educação, da segurança pública, da assistência social e da justiça que atuam articuladamente para garantir proteção à vida das mulheres estão desmobilizadas. “Na pandemia, não tem Rede. As mulheres, muitas vezes, não estão chegando sequer na delegacia. A ausência dessa segurança para fazer a denúncia é um elemento central do processo”, explica.

A fala de Ariane ressoa no fato já apresentado pela SSP/RS: em nenhum dos casos de feminicídio do mês de abril as mulheres haviam feito denúncias anteriores contra seus agressores. O que explica que essas mulheres tenham morrido sem sequer terem feito um boletim de ocorrência? Sem que tenham conseguido chegar aos serviços que deveriam ofertar acolhimento e segurança? Télia Negrão chama atenção para uma análise produzida pela ONU evidenciando a existência de um padrão de violência que em situações de crise sanitária e humanitária se reproduz e atravessa distintas regiões, em escala global.

“As violências aumentam e atingem as mulheres, em contexto de pandemia, que estão com maior dificuldade de acesso às políticas públicas. Nos países mais ricos, como Alemanha e Austrália, apesar da pandemia e do isolamento, as mulheres conseguiram acessar os serviços e as denúncias aumentaram. Nos países mais pobres, onde os serviços não estão funcionando adequadamente, as mulheres não conseguem acessá-los e os feminicídios crescem. O Brasil se enquadra nesses países onde as mulheres não denunciam e acabam passando por uma situação de violência muito forte. Elas morrem sem terem feito um registro de ocorrência, sem terem uma medida protetiva”, pontua Télia.


O aumento dos feminicídios é apenas um sintoma mais visível de uma realidade já existente no Estado / Felipe Carneiro

Apesar do aprofundamento dos desafios na prevenção e combate à violência doméstica durante a pandemia, o aumento dos feminicídios é apenas um sintoma mais visível de uma realidade já existente no Estado: em 2019, o Rio Grande do Sul foi o terceiro estado com mais casos de feminicídio, de acordo com o relatório da Força-Tarefa de Combate aos Feminicídios no RS. No “Monitoramento da Violência contra a mulher na pandemia do coronavírus”, investigação feita pelo Porta Catarinas em parceria com outros veículos de jornalismo independente, o Rio Grande do Sul configura como o quarto estado com mais feminicídios consumados no Brasil, no primeiro quadrimestre de 2020.

“Ao não existirem possibilidades de as mulheres acessarem os mecanismos de denúncia e proteção, as mulheres estão reféns. Esse indicador de acesso aos serviços de combate a violência doméstica determina também a gravidade dos crimes”, Télia Negrão, Conselheira Diretora da Rede Feminista de Saúde e da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC).

A queda brusca no orçamento destinado a Rede de Enfrentamento e Atendimento às Mulheres em situação de violência é indicada como um dos principais fatores que influenciam o aumento dos feminicídios. Os cortes impactam tanto a qualidade, como a existência dos serviços de enfrentamento a violência e a exclusão social das mulheres. Ariane Leitão ressalta que o valor destinado para a questão, em 2020, foi de R$ 20 mil. Em 2019, o orçamento destinado foi de R$ 180 mil – valor já considerado insuficiente. Enquanto as mortes de mulheres aumentavam, o governo do Estado decidiu reduzir nove vezes os investimentos.

“É necessário investimento em políticas públicas para as mulheres ou as mortes continuarão aumentando. Nossas vidas, neste governo, valem R$ 20 mil reais e os serviços de enfrentamento a violência não são considerados essenciais. Falta rede, falta articulação, existe polícia trabalhando e saúdo o trabalho dos policiais. Mas, não temos nenhum projeto vinculado de emancipação das mulheres. Fomos o terceiro Estado que mais mata mulher no ano passado e estamos reféns da necropolítica do Eduardo Leite”, expõe Ariane Leitão.

Com exceção da emenda parlamentar 275, não há previsão orçamentária de investimentos governamentais voltados ao combate da violência doméstica durante o período da pandemia. De autoria da deputada estadual Luciana Genro (PSOL), a emenda prevê o repasse de R$ 250 mil para criação do projeto “Acolhendo Vidas” – que possibilitará a compra de vagas em locais que possam abrigar mulheres em situação de violência doméstica no Rio Grande do Sul. A compra se dará via edital e priorizará os municípios que não possuem casas-abrigo.

“Quando começou a pandemia, o governo do Estado pediu para que nós mudássemos o escopo de todas a emendas destinando-as para a saúde. Fiz isso com outras, mas a emenda 275 propus para que fosse destinada ao combate da violência contra mulher, pois sabia que a pandemia iria aumentar essa violência. O governo do Estado não tem política voltada para as mulheres especificamente e esse dinheiro seria destinado para compras de vagas em hotéis ou locais que tenham condição de abrigamento das mulheres em situação de violência. O dinheiro já está destinado, o que ainda não saiu foi o edital para compra de vagas. Estamos batalhando para que saia o mais breve possível”, conta Luciana Genro.

“As mulheres voltaram a ser caso de polícia, não aparecemos em nenhuma outra seção do jornal que não esteja vinculada à violência”, Ariane Leitão, advogada e coordenadora da Força-Tarefa de Combate aos Feminicídios no RS.

O desmonte das políticas públicas de enfrentamento a violência contra mulher é um projeto antigo dentro do Estado do Rio Grande do Sul. Em 2015, no governo de José Ivo Sartori (MDB), houve o fechamento da Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres que se transformou em um departamento dentro da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos. O orçamento de políticas para as mulheres reduziu de R$ 10.073.313.89, em 2014 no governo de Tarso Genro (PT), para R$ 180.000,00 em 2018. No governo Eduardo Leite (PSDB), o corte orçamentário foi ainda mais drástico.

“O retrocesso das políticas públicas fica claro com o desmonte do Conselho Estadual dos Direitos das Mulheres, da Coordenadoria Estadual da Mulher, da Secretaria da Mulher, com o fim da chamada Rede Lilás – um mecanismo da articulação do conjunto de políticas públicas de enfrentamento que estava instituindo protocolos.  A rede de atendimento às mulheres no Rio Grande do Sul está hoje fraturada”, narra Télia Negrão.

Com a recessão econômica pós-pandemia, momento que em muitas mulheres mesmo saindo do isolamento encontram-se em situação de vulnerabilidade econômica em decorrência do crescente desemprego, Ariane Leitão não enxerga possibilidade de melhorias no quadro. “Vai vir um ajuste fiscal muito forte. Sabemos que nas crises econômicas e políticas os direitos das mulheres estão entre os primeiros a serem perdidos. Já está acontecendo e vai piorar. Não esperemos investimento público em relação a vida das mulheres. O pior é vivermos nesta política de morte, onde o Bolsonaro e outros autorizam essa onda de violência fascista e ultraconservadora”, lamenta.

A crise que abate os serviços de enfrentamento a violência doméstica antes e durante a pandemia de Covid-19 não é uma exceção do Rio Grande do Sul. Em todo o Brasil, a eleição do presidente Bolsonaro (sem partido) permitiu a ascensão do pensamento ultraconservador e ultraliberal que naturaliza o machismo e suprime políticas que garantam o direito à vida das mulheres.

Para Télia Negrão, o impacto das políticas de ódio propagadas após o golpe da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) ecoou com profundidade no Rio Grande do Sul fazendo emergir padrões de conservadorismo cultural e machismo muito elevados. A pandemia está dando apenas visibilidade para um problema enraizado: a relação de dominação socialmente estabelecida entre homens e mulheres que autoriza o machismo e, consequentemente, a propagação de violências.

“Existem as tradições gaúchas que são bastantes conservadoras e que colocam as mulheres num papel secundário muito forte. Atualmente, a misoginia é um padrão cultural muito importante no Rio Grande do Sul que chama atenção nesse processo da pandemia. Só transformações sociais profundas dão conta das relações de gênero desiguais que produzem essas ideias de propriedade dos homens sobre as mulheres”, aponta Télia.


A pandemia está dando apenas visibilidade para um problema enraizado: a relação de dominação socialmente estabelecida entre homens e mulheres / Divulgação Catarinas

 

Equipe da série: Um vírus e duas guerras

Amazônia Real: Kátia Brasil (editora-executiva); Eduardo Nunomura (editor), Alícia Lobato, Roberta Brandão (também fotógrafa), Nicoly Ambrózio, Maria Fernanda Ribeiro e Juliana Arini (repórteres); Elvira Eliza França (revisão); Hadna Abreu (ilustrações); e Alberto César Araújo (editor de fotografia)

Agência Eco Nordeste: Maristela Crispim (editora geral); Adriana Pimentel, Elizangela Santos, Líliam Cunha e Yara Peres (repórteres); e Flávia P. Gurgel (designer)

#Colabora: Fernanda Baldioti (editora), Liana Melo (repórter), Fernando Alvarus (infografia), Nina Millen (ilustração)

Portal Catarinas: Paula Guimarães (editora), Inara Fonseca, Juliana Rabelo, Morgani Guzzo (repórteres) e Felipe Carneiro (ensaio fotográfico)

Ponte Jornalismo: Maria Teresa Cruz (editora), Caê Vasconcelos e Jeniffer Mendonça (repórteres), Antonio Junião (ilustrações) e Maria Elisa Muntaner (análise de dados)

Edição: Catarinas