Rio Grande do Sul

CORONAVÍRUS

Um novo mundo após a pandemia foi tema da live 'A Cidade e a covid-19'

Debate reuniu Manuela D’Ávila, Tarso Genro, a prefeita de Barcelona, Ada Colau e o sociólogo Boaventura de Sousa Santos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Economia, política desigualdade social, questões de gênero e de exclusão, soberania alimentar foram alguns dos assuntos - Divulgação

Um novo mundo, com uma relação mais profunda com a natureza no planeta, maior participação das pessoas nas decisões políticas, uma vida centrada nos locais de moradia, as cidades, uma relação global de solidariedade mais profunda e um novo desenho político sem lugar para a democracia liberal representativa logo após o pico da pandemia da covid-19. Essas são algumas das conclusões do debate virtual realizado entre a ex-deputada federal Manuela D’Ávila, a prefeita de Barcelona, Ada Colau, o ex-governador Tarso Genro e o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, na sexta-feira (08). Cerca de mil pessoas assistiram a transmissão ao vivo e deram opiniões durante o encontro na página do Facebook de Manuela D’Ávila.

O debate foi aberto pela anfitriã e mediadora que falou cerca de 15 minutos colocando suas preocupações com o tema. A primeira delas, conforme Manuela, “é a nossa relação com o planeta, com a natureza. A forma que nós imaginamos que era possível construir um projeto de desenvolvimento predatório que não levasse em conta a reinvenção dessa relação com a nossa mãe comum. Qual é o caminho que deveremos percorrer para restabelecer esta relação que é predatória, fortemente escancarada no Brasil com o desmatamento crescente da região amazônica? Mas que é quotidianamente visível nas nossas cidades com a desvalorização dos profissionais que são os catadores e catadoras de resíduos sólidos?”

Segundo ela, este tempo da pandemia tornou mais visíveis todas as vulnerabilidades do mundo em que vivemos. “Torna visível a falsidade da ideia de um livre mercado, de um deus da mão invisível deste mercado que, em tese, protegeria a todos, ou que permitiria que o vírus fosse democrático, ignorando que as consequências do contagio reproduzem a desigualdade econômica fortemente”, explica.

Manuela seguiu colocando questões que foram respondidas por cada um dos participantes. Economia, política desigualdade social, questões de gênero e de exclusão, soberania alimentar foram alguns dos assuntos.

Não voltaremos à “normalidade”

A prefeita de Barcelona Ada Colau, lembrou que sua cidade foi uma das mais atingidas pela pandemia, com grande número de mortos e que agora, paulatinamente, vão retomando a vida. “Mas não retornaremos jamais à normalidade anterior ao aparecimento do vírus”, explicou. Conforme seu raciocínio, ainda se está aprendendo porque a situação é desconhecida. “Este vírus ninguém sabia que ia aparecer e não é culpa de ninguém, de nenhuma pessoa nem de nenhum país. Porém todos nós somos responsáveis com a atitude que respondemos a esta situação inédita. Isto depende de nós nos respondemos com egoísmo ou com solidariedade, se respondemos de maneira individualista, se respondemos de forma cooperativa”.

Colau disse que existem muitas incertezas sobre o que aconteceu e sobre o que acontecerá. “Sabemos que ainda que nos esforcemos muito, ficaremos em casa e baixam os contágios, mas até termos uma vacina, teremos um ano. E a realidade está mudando, todavia não sabemos o que irá acontecer no próximo mês. Temos que aprender a viver num mundo com muitas precariedades, muitas incertezas e muitas angústias que as acompanham”.

Salientou ainda que é importante recordar que “esta crise não é só de saúde, é também uma crise social porque afeta muito mais aqueles mais vulneráveis em múltiplos sentidos. É também uma crise econômica pois vai fechar milhares de postos de trabalho. Mas também é uma crise emocional e é importante pensar nisso. Numa crise emocional necessitamos uns dos outros. Temos que ter distância física, mas de alguma maneira nos necessitamos mais do que nunca, precisamos encontrar-nos, para saber como estamos, para saber o que pensamos, o que desejamos, o que tememos”.

Nada é mais importante do que a vida

Recordou a crise de 2008, quando houve uma virada da maioria dos governos. “Foi a época das privatizações, da mercantilização que salvou os responsáveis pela crise que eram os grandes bancos, grupos financeiros. Porém, conforme ela, se fizeram cortes nos serviços básicos, como os serviços públicos de saúde”. E continuou mostrando que a crise atual mostrou os erros, “os efeitos mortais de ter um serviço público desmontado. Por isso é uma das reflexões mais imediatas, não se podem recortar os serviços públicos básicos como a Saúde, como a educação, porque são imprescindíveis para a vida humana e nada é mais importante do que a vida humana”.

Outra que coisa que não está resolvido na Europa é como cuidar das pessoas mais velhas. “Os anciãos, os mais vulneráveis a este vírus. Na Europa, uma boa parte dessas pessoas mais velhas, e, portanto, as mais vulneráveis, estavam sem previdência nos centros onde tinham sido majoritariamente privatizados e que efetivamente foi onde mais mortes se produziu”.

Segundo a prefeita, “não queremos voltar à normalidade da precariedade, não queremos voltar à normalidade das desigualdades de classe, de origem, de gênero. Não queremos volta esta desigualdade sistêmica. E este sistema econômico e político se reproduzia tendo por base essa desigualdade. Não queremos voltar à contaminação de nossas cidades, há um efeito colateral que as vezes é terrível. O que se descobriu é que, ao parar a atividade econômica na cidade, diminui a poluição como não havia baixado em décadas. De repente em nossa cidade que estava muito poluída e que nos provocava centenas de mortes a cada ano, escutamos os pássaros, vimos o céu azul, a gente pode respirar bem. Isto é um paradoxo, porque muita gente se conscientizou de como é importante acabar com a poluição”.

Para ela há uma consciência coletiva por um mundo melhor e esta crise está dando a oportunidade. O municipalismo, a política da cotidianidade, da proximidade, da cidadania e desde a base “entendemos que é importante e o protegemos”. Uma coisa que preocupa é que a distância física não mude as cidades e as formas de ser, “porque necessitamos mais amor do que nunca, mais empatia do que nunca, mais proximidade que nunca. O que não necessitamos é massificação, aglomeração, porque efetivamente isso nos põe em perigo”.

Uma nova democracia

O ex-governador Tarso Genro, por sua vez, falou sobre uma nova democracia. Abordou o tema do ponto de vista político exemplificando com o caso brasileiro. Falando a Ada e a Boaventura, foi incisivo: “vocês não podem imaginar emocionalmente o que significa este governo Bolsonaro e a tragédia política que ele semeia através de suas ações. É um homem que desafia as recomendações da Organização Mundial da Saúde, é um homem que, ontem, ensaiou uma marcha sobre Roma em direção ao Supremo Tribunal Federal. Reuniu um bando de apaniguados e invadiu o STF. E chamou o presidente do STF para ouvi-los. E, durante a reunião, sequer olhava para o presidente do STF. E olhava o relógio para ver se tinha terminado porque ele já tinha falado e ia embora”.

Lembrou que existem dois grandes eixos que devem ser tomados ainda durante a pandemia para organizar a vida comum. “Porque a pandemia vai passar com todas as tragédias que vai determinar, vai passar. Mas o arbítrio, o elogio da tortura, a violência contra a população está instaurada aqui no Brasil através do governo Bolsonaro em todos os níveis. Isto nós não sabemos se vai passar. Nada nos aponta que isso aí irá passar neste momento. Eu aponto três motivos para este raciocínio: em primeiro lugar é que nós não temos uma voz pública comum que tenha uma capacidade convocatória para a sociedade organizar a resistência e dar uma perspectiva de futuro. Existem esforços neste sentido, estão aí o Fernando Haddad, o Boulos, está aí o Flávio Dino, o Requião, estão todos tentando influenciar sobre as estruturas burocráticas dos partidos para que falem uma voz comum, para que digam alguma coisa para a sociedade e isto nós não estamos conseguindo”.

De acordo do Tarso, o segundo motivo é que, como consequência deste primeiro, a única força organizada que existe hoje e que tem respeitabilidade pública são as forças armadas. “Elas detêm o poder de arbitragem concreto hoje nesta situação atual que vivemos, neste sistema normativo que está na constituição e um sistema concreto que opera nas relações com a sociedade. Com um STF em dificuldades para se impor, onde na Câmara federal e no Senado tem uma maioria conservadora dominada pela direita, pelos evangélicos, pelas religiões do dinheiro.”

Explicou ainda que um terceiro motivo “é que nós não tivemos condições ainda, embora existam esboços a respeito disso, de criar um programa de transição que responda três coisas muito concretas: Qual é o sistema de proteção social que vai suspender as reformas ultraliberais que estão sendo feitas hoje no Brasil e que já devastaram a legislação trabalhista? Quais são as relações internacionais que nós vamos estabelecer num governo, terminado esta política de relações internacionais que é absolutamente humilhante para o país? Quais são as relações internacionais que vão trazer estabilidade com um projeto externo-interno no Brasil? Com o nacionalismo exacerbado dos países ricos, evidentemente nós não teremos um destino sozinhos, separado do resto da humanidade. Mas a questão do sistema político também está hoje sob o holofote da crítica. A democracia liberal representativa não tem mais respostas para dar. As grandes decisões políticas do país estão se transladando para o Supremo Tribunal Federal”.

Por essas questões, segundo ele, é que os partidos políticos vão ter que se renovar e compreender que não mais dirigirão às suas bases de cima para baixo. É preciso uma organização horizontal e “este horizontal é a voz da sociedade organizada, a voz da sociedade articulada, em redes, em última análise teremos que conduzir os partidos a novos caminhos diferentes daqueles que eles passaram até agora.”

O Brasil tem duas grandes crises

O professor Boaventura de Souza Santos foi o último a falar. Inicialmente destacou que nunca participou de tantos debates como na atualidade. Para ele, em nenhum outro país se precisou tanto um do outro neste momento como o Brasil. E deixou uma palavra de solidariedade: “O Brasil é um caso único no mundo hoje, é um caso de laboratório. Porque é um país que, ao contrário de todos os outros, tem duas crises para resolver. Tem a crise da pandemia e tem a crise política, um presidente obviamente criminoso, genocida. O seu comportamento que leva a morte das pessoas”.

Ele entende que não podemos nem resolver bem a crise da pandemia, nem resolver bem a crise política. “Eu penso realmente que haveria necessidade de tentar resolver uma ao menos e aquela que se devia tentar resolver neste momento, por incrível que pareça, é realmente a crise política porque eu penso que a permanência de Bolsonaro até 2022 vai ser um desastre”, afirmou.

“Não vejo ainda que as forças que deveriam cuidar mais da democracia estejam plenamente conscientes daquilo que se está a passar. Dissemos ainda ontem, numa transmissão ao vivo, o que a esquerda deve fazer. Deve distribuir cestas básicas para criar uma proteção nas comunidades que estão abandonadas. Onde o estado não chega, onde o estado encontraria todas as condições para que as pessoas morram e morram como este estado genocida tem dito e está a propor”, disse.

O vírus está ensinando

Segundo o sociólogo, vamos entrar num período de pandemia intermitente e depois, se continuarmos com este modelo de desenvolvimento, provavelmente nós vamos ter outras pandemias. O aquecimento global, o desmatamento das florestas, a contaminação dos rios a expulsão dos camponeses e dos imigrantes de suas terras, tudo isto está a produzir como uma guerra.

Ele afirmou que o “vírus está a tentar nos ensinar alguma coisa. É a natureza, a terra mãe que nos está a ensinar, que está a defender o que ela pode fazer. Porque nossa vida, a vida humana no planeta é 0,01% da vida. E, portanto, o resto da vida tem sido agredida com o modelo que nós temos instaurado. E toda a vida do planeta está a insurgir-se obviamente contra a rrogância, contra o desprezo, contra a negligência com que temos realmente agredido a natureza. Portanto, neste momento, quando nós falamos de saúde, dizemos que tem de haver um investimento em Saúde pública obviamente. Mas não pensem que a Saúde pública em que temos que investir é apenas a Saúde para nós humanos. É uma saúde global vai ser outro conceito de saúde. É saúde para a natureza, é saúde para os rios, é saúde para as florestas, é saúde para o meio ambiente”.

Um dos ensinamentos para tirar da pandemia, conforme Boaventura é “realmente que a extrema-direita e a direita saem completamente desacreditadas. O comportamento deles nesta pandemia foi absolutamente desastroso. Vejam na Inglaterra, Boris Johnson obviamente negligenciou, era uma gripe, não tinha pressa e era uma coisa que ia passar. Não havia confinamento. Acabou sendo infectado, foi salvo pelo sistema público de Saúde que ele queria privatizar, salvo por dois enfermeiros - um português e uma nova-zelandesa - quando ele fez a campanha eleitoral toda dizendo ‘não quero mais imigrantes’. Foram os imigrantes que lhe salvaram a vida. Portanto, a direita mostrou que é muito boa para destruir, mas não é boa a construir”.

Com a direita, o estado não é capaz para resolver isso. “Portanto, tem que procurar um bode expiatório. Para o Trump são a China e a Organização Mundial da Saúde, na Índia são os muçulmanos e no Brasil os inimigos de Bolsonaro. É criar uma crise política para disfarçar a incompetência”. Portanto a extrema-direita e a direita tiveram dois comportamentos: “um é o negacionista, não faz nada, foi caso do Brasil. Outros como Victor Orban na Hungria, como o Sikorski na Polônia, também utilizaram a pandemia para concentrar os poderes e aumentar o autoritarismo por tempo indeterminado. Portanto entre o negacionismo de que não há crise nenhuma e que isto é uma coisa normal e alguma gente vai morrer e os outros que criaram estados autoritários, a direita sai daqui com o currículo despedaçado, com um currículo de vergonha”.

A Itália e na França eram os países que haviam privatizado mais a saúde viram o desastre que aconteceu nestes dois países, lembrou o sociólogo. “Portugal também tinha, estava meio sucateado, mas aprendeu com a experiência dos outros. A Espanha e Portugal de comum acordo fecharam a fronteira rigorosamente e foi assim que Portugal conseguiu estar a atravessar a pandemia com curva relativamente achatada, que fez com que nosso sistema nacional de Saúde não entrasse em colapso. É curioso, o mercado regulava todas as relações sociais, daí vem uma pandemia e o mercado desaparece. Ninguém fala sobre o mercado os mercados é evidente fazem aquilo que disse a Ada Culau, aproveitam-se imediatamente para ganhar com a crise. Criou-se um certo capitalismo corsário, ou pirata, de roubar máscaras e especular com o preço. Vejam o governador da Bahia, que compra os primeiros respiradores a um preço, os aparelhos não chegam porque são desviados para um outro país e a segunda remessa custa duas vezes mais e tinha que pagar à vista. Quer dizer, especulação em cima de especulação”.

“É que o sistema privado de Saúde está a querer aproveitar-se dessa onda, uma máscara que pode custar dois ou três euros estão a cobrar 25 euros. A um doente que faça uma consulta, ele tem que pagar não só a sua máscara como a do médico. Isto é colocar a economia acima da vida. Mas isto foi sempre o capitalismo, uma economia de morte, sempre foi o que a direita veio regular. Foi isto que disse Bolsonaro, foi isso que disse Boris Johnson, foi isso que diz Trump. É a economia que pode prosperar em cima de um monte de cadáveres, porque não interessam. São os menos produtivos, os mais pobres, os que estão nas favelas, os perigosos, e, portanto, isso é limpeza social” disse o sociólogo.

Portanto, de acordo com Boaventura, o que estamos assistindo é que os países que procuraram a melhor solução foram aqueles que disseram que a vida está primeiro. “Portugal, Espanha e mesmo aqui na Europa, Itália e França, fizeram a opção diferente. Trump e outros, procuraram financiar as empresas e não o rendimento das famílias. Portugal e Espanha não, apoiaram o rendimento das famílias. Há uma diferença que se tornou clara por que? Porque quando os mercados aparecem, a população quer o estado, mas não quer um estado que reprima, quer um estado que as proteja”, concluiu.

Edição: Marcelo Ferreira