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O mal existe porque, afinal, votaram nele!

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"Bolsonaro é um psicopata, apologeta da tortura e da sevícia" - Reprodução
O mal nos desconforta por dentro porque em nossa psique não o aceitamos moralmente, mas o desejamos

Hannah Arendt deu uma grande contribuição às luzes do conhecimento. Não porque tenha abordado com precisão as origens do mal, mas compreendeu bem e ofereceu uma grande abordagem sobre como ele, o mal, se reproduz.

Na busca de uma explicação de como o mal se origina, a proposta de solução teórica confundiu ideologias e equalizou sistemas políticos muito distintos, propôs abarcar sob o conceito do totalitarismo, regimes completamente distintos entre si, como o nazismo e o stalinismo. Cujas diferenças que não se resumem à ideia de Estado total, tão ao gosto da guerra fria em curso no pós-guerra e da ideologia econômica em emergência à época, mas que distinguem, no fundamental, por sua metafísica, seu devir.

Arendt contribui decisivamente para trazer à atualidade das ciências humanas e da política a explicação de como o mal se multiplica. Ofereceu a ideia de que o mal é banal e pode ser exercido por qualquer um, como demonstrariam os depoimentos de Adolf Eichmann, o nazista julgado em Jerusalém, em abril de 1961, por crimes contra a humanidade. Segundo a versão apresentada na cinebiografia, “Hannah Arendt”, dirigida por Margarethe von Trotta, em 2012, Hannah Arendt teria dito que esperava ver um monstro, mas o que teria encontrado era um medíocre burocrata preocupado apenas em cumprir ordens.

A busca pela exata fronteira entre as responsabilidades do indivíduo e da sociedade e entre o indivíduo e o Estado remonta aos campos de investigação da filosofia, da ciência política, da sociologia e da psicologia, desde o sempre, no que diz respeito aos questionamentos sobre a humanidade e a cultura.

Tendo Arendt atribuído o mal a um homem medíocre, ao ser comum, não podemos deixar de, criticamente, estabelecer que somente a enormidade do crime do Holocausto permitiria a tantas pessoas comuns aderirem ao mal, como um modo de levar a vida. Deparamos assim com a questão ética central do fato da responsabilidade ser atribuída a cada um dos comuns ou ser inerente a um sistema que propaga o mal como ideologia. A questão não é, portanto, se Eichmann exerceu o mal, mas porque tantos eichmanns passam a banalizá-lo.

Quem viu imagens de dois indivíduos, uma mulher e um homem, fantasiados com capa e espada de uma pátria que criaram, transtornados, agredindo verbalmente enfermeiros e trabalhadores da Saúde que se manifestavam neste 1º de maio, em Brasília, ficou perplexo com aquelas pessoas comuns exercendo o ódio. Ficam ainda mais impactados aqueles que relacionam este episódio ao fato, anterior, do presidente da República desdenhar da morte evitável. É a força da nova direita orgânica no país, de caráter neofascista, e seu governo que dão legitimidade para que tamanha sandice se apresente, em nome da pureza ideológica, sem obstruções morais ou éticas.

Teorias científicas das ciências sociais permitem análises, com base em evidências e sólida metodologia, que venham a explicar o fenômeno social que acabou por levar esta nova direita, mais exatamente um determinado indivíduo que professa o ódio como plano de ação, ao governo.

Quais as forças, classes e frações e com quais interesses e determinações? Em que quadro mundial e nacional? Como incidiu a crise de acumulação de capital do neoliberalismo? Qual o papel dos interesses internacionais? Como se deu o ativismo político das altas burocracias judiciais e militares em seu favor? Há um "bonapartismo brasileiro" em curso? Quais as motivações e interesses do oligopólio das comunicações? Todas as variáveis racionais serão explicadas e todos os problemas de pesquisa respondidos, basta tempo.

Mesmo assim, com as explicações científicas mais sólidas disponíveis, imagino que estaremos imersos na mesma perplexidade com a qual nos deparamos quando estudamos, analisamos, lemos e assistimos ao nazismo e seus horrores. Quando tomamos conhecimento dos julgamentos, dos depoimentos e das evidências do maior horror de todos os tempos. Fatos e fenômenos tão estudados, quanto por estudar.

E mesmo envolvidos em incredulidade, paralisados com aquele breve sentimento de que toda a ciência social não consegue explicar tamanho mal e tamanha iniquidade, é preciso superar esses sentimentos e compreender, analisar, interpretar, descobrir as razões pelas quais o Brasil mergulhou em um mundo trágico proposto por essa versão neoliberal do fascismo. Bolsonaro é um psicopata, apologeta da tortura e da sevícia. Ele despreza a condição humana, abjeta a ideia do ser igual, odeia o outro, acha que precisa destruir para se construir.

O que impressiona é que podemos concluir que todos, ou ao menos a grande parcela de seus eleitores e não eleitores sabiam e, apesar de tudo, assim como ocorrido na Alemanha sob Hitler, foi votado, transformado em líder e venceu as eleições. Trata-se objetivamente da vontade do povo, devidamente construída, jogada contra os direitos desse mesmo povo.

O mal nos desconforta por dentro porque, em nossa psique, não o aceitamos moralmente, mas o desejamos. Esse desejo, em alguns submetidos a algumas circunstâncias, passa a ser inamordaçável, infreável. O mal torna-se uma tragédia, porém quando passa a ser banal e por banalizado transforma-se em método, política, ideologia, moral e crença, deixando de ser latente para aflorar em cada um ou na projeção de cada um, buscando, a seguir, reconhecimento, segurança e legitimidade na comunidade de iguais. Em uma busca da Ku Klux Klan que lhe inspira.

Bolsonaro propaga o que Immanuel Kant chama de “mal radical”, aquele que está enraizado em quem o pratica. Bolsonaro é o puro mal. O mal desprovido de constrangimentos, é o mal livre, banalizado e socializado. O mal como moral específica que a tudo subordina à missão maior. Por isso é o mal mais perverso, o mais obscuro que se possa conhecer. O empoderamento dessa razão de ser, sob a forma governo e sob a forma partido, dá a dimensão manifesta da transformação da banalidade do mal em política.

 

Edição: Katia Marko