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Quem acha que venceu precisa combinar com o vírus

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Depois de rifar Mandetta, agora é a vez de fritar Sérgio Moro - José Cruz/Agência Brasil
Aparentemente, Bolsonaro mandou às favas a aliança com o lavajatismo e com os liberais

Na edição passada, sugerimos no Ponto que Bolsonaro estava desesperado para mostrar que ainda era presidente, e indicamos algumas pistas de uma tentativa de rearticulação política, já desencadeada nas redes sociais, que estavam reorganizando as fileiras para atacar a política de distanciamento social. Pois a rearticulação veio à moda Bolsonaro, brusca e contraditória, como veremos nos pontos abaixo.

1. Mais uma estrela na frigideira. Aparentemente, Bolsonaro mandou às favas a aliança com o lavajatismo e com os liberais, sendo cada vez mais o deputado de baixo clero que sempre foi e mantendo o foco na única coisa que lhe interessa: a sobrevivência política até 2022. A gestão do governo está cada vez mais a cargo dos militares, instalados na Saúde e liderando até o pacote econômico à revelia de Paulo Guedes. Enquanto isso, Bolsonaro sonha com um autogolpe, mas na prática oferece cargos para o centrão e tenta apagar os ministros que ainda têm alguma luz. Depois de rifar Mandetta, agora é a vez de fritar Sérgio Moro, com a exoneração do diretor-geral da Polícia Federal, Mauricio Valeixo, publicada no Diário Oficial desta sexta (24). Coincidência ou não, neste momento a Polícia Federal está investigando as fake news contra o STF e teria chegado à brilhante conclusão de que o vereador Carlos Bolsonaro e seu “gabinete do ódio” são mentores da disseminação dos ataques. A abertura de investigação sobre a organização das manifestações que pediram ditadura militar também teria incomodado o Bolsonaro, que ao longo de 2019 teve outros momentos de insatisfação contra a PF, ainda que a corporação esteja bem menos pró-ativa em comparação a governos anteriores. Mas, na prática, o principal motivo em cutucar Moro e mexer na PF seria um prosseguimento na tentativa de recuperar terreno político com o centrão, num momento em que se acumulam no Congresso 24 pedidos de impeachment, e na ânsia de afirmar sua autoridade. “Ou sou o presidente ou não sou”, teria dito Bolsonaro. Trata-se de uma aposta arriscada em vários sentidos e que assusta o mercado financeiro, que vê crise sanitária se somar uma crise política. Para Vera Magalhães, no Estadão, Bolsonaro teria visto a chance de refazer o seu governo, “sem postos Ipiranga, sem concessões a superministros e sem levar desaforo (mesmo os imaginários) para casa”. A questão é saber se tem cacife para isso e se não será atropelado pela realidade imposta pelo avanço do coronavírus.

2. Domingão do fanfarrão. Ainda no domingo (19), tivemos mais uma prova de que não se deve analisar o governo Bolsonaro em termos lineares. Ao mesmo tempo em que começava a negociar cargos com o centrão, Bolsonaro participava de um ato em defesa do AI-5, atacando o Congresso, como já havia demonstrado que faria na sexta, depois que Mandetta cansou de apanhar todos os dias e foi embora. Nenhuma surpresa também que os ataques sejam coordenados por Carluxo e o gabinete do ódio, seguindo a estratégia já bem conhecida. Na sequência, vêm as notas de repúdio e o pedidos dos militares para baixar o tom. Em público, os militares dizem que não concordam com as declarações mas, em privado, se sentem envaidecidos e concordam com os arroubos. Afinal, este é o seu governo. No dia seguinte, Bolsonaro modera o discurso, mas a corda já esticou mais um pouco, tanto que seus seguidores, incluindo parlamentares, já não se envergonham de clamar publicamente por um golpe. E enquanto atacava o sistema, Bolsonaro estava mesmo era fazendo a velha política. Desde a semana passada, os generais de Bolsonaro iniciaram tratativas para atrair o apoio do PP, Republicanos, PSD e PL nas votações no Congresso. Em troca, cargos no Dnocs, FNDE, Funasa, Banco do Nordeste e a Secretaria de Vigilância em Saúde. Na sequência, o governo deve ir atrás de legendas menores e mesmo do MDB.

3. E então? Da parte do bolsonarismo, a lógica do time que está ganhando vai prevalecer. A corda vai continuar esticando e Carluxo vai manter o ânimo e a movimentação da tropa virtual, como já tem funcionado para recuperar o espaço nas redes sociais e estancar a queda da popularidade nas ruas. Especialmente agora que os seguidores lavajatistas podem deixar a base social do governo. Quanto à operação para cooptar o centrão, tirando das mãos de Rodrigo Maia e eleger seu sucessor, o governo vai ter que entrar nesta briga para vencer, alerta Alon Feuerwerker, pois o custo da derrota é alto. O jornalista lembra que o centrão não é um bloco homogêneo, tem muitos líderes e, em comum mesmo, só o gosto voraz por cargos. E não apenas os do segundo escalão, o que levaria necessariamente a uma reforma ministerial. Ainda que a democracia seja surrada a cada dia, a hipótese do autogolpe parece improvável para Thomas Traumann, que lembra que eles só ocorrem, assim como os impeachments, com grande apoio popular. O que não é o caso no momento nem para um, nem para outro. A ideia dos militares derrubarem Bolsonaro também não existe, as Forças Armadas sabem que este é um governo visto como militar e o fracasso do capitão aposentado é o fracasso da instituição. Já na oposição, para Ricardo Capelli, o que impede qualquer ação mais consequente contra Bolsonaro é quem vai liderar quem. A esquerda topa ser liderada pelos liberais? Os liberais topam o contrário? Sem povo e sem unidade, permanecemos no empate, resume. Apesar deste cenário de impasse, assim como Traumann e Capelli, para Valério Arcary, o empate não será perpétuo, porque a pandemia e a crise social e política vão ficar mais graves.

4. Aqui jaz o neoliberalismo. Nesta semana, Paulo Guedes, o último defensor intransigente da Escola de Chicago viu os militares não apenas aprovarem um programa que coloca o Estado de volta nos investimentos públicos, como cogitarem o fim do teto dos gastos e, pasmem!, barrarem o programa de privatizações. O Pró-Brasil estava pronto há tempos pelo ministro da Infraestrutura Tarcísio de Freitas e vinha sendo barrado sucessivamente por Guedes. O fato do programa ter sido anunciado pelo chefe da Casa Civil Braga Netto, sem a presença de ninguém da equipe econômica na coletiva, significa que, justamente na crise, Guedes não foi o “posto Ipiranga” de Bolsonaro. Entre o pragmatismo político e a ortodoxia do ministro da Economia, Bolsonaro nem precisou pensar muito. No anúncio, Tarcísio de Freitas ainda alfinetou que as privatizações são um caminho demorado para retomar empregos e crescimento. O plano pretende investir R$ 30 bilhões e gerar entre 500 mil e um milhão de contratações. Ainda que bem sucedido, isso significaria que o Estado tentaria suprir menos da metade das três milhões de demissões previstas pela indústria. Enquanto isso, acessar o auxílio emergencial se transformou numa batalha, como temos mencionado há semanas. Dos 42,2 milhões de pedidos do auxílio, apenas 24,2 milhões de brasileiros receberam os recursos. Além destes, outros 5,5 milhões de brasileiros sem acesso a internet e conta no banco estão ameaçados de não acessarem o benefício. 

5. A Europa não é aqui. Mais discretos do que Bolsonaro, alguns governadores já preparam uma saída do isolamento, notoriamente os tucanos: João Dória, pressionado pela FIESP, deve abrir parte do comércio em maio, e Eduardo Leite, que fala em um isolamento por regiões. Ainda que o número de mortes no país esteja dobrando num ritmo mais rápido do que os Estados Unidos e Europa, a falta de dados e de uma estrutura capaz de fazer testes massivos alimenta a falsa ideia oposta de que a curva brasileira estaria achatando, tal como os europeus há cinquenta dias em isolamento. Não sabemos e nunca saberemos quantos brasileiros realmente foram vítima da Covid-19, mas o fato é que as mortes por síndromes respiratórias superam mais de oito vezes a média dos anos anteriores. Só o Rio de Janeiro registrou mais internações nas últimas quatro semanas do que ao longo de todo o ano passado. E os leitos de UTI já acabaram na rede pública das cidade do Rio de Janeiro e de Belém e nos estados de Ceará, Pernambuco e Amazonas. O caos já chegou. Enquanto isso, os estados receberam apenas dois milhões de testes rápidos, recomendados para aplicação em profissionais de saúde, e 524,3 mil testes do tipo RT-PCR, que são mais caros, rápidos e precisos. Em meio ao colapso da saúde e na disputa pelos equipamentos, a ação do governo do Maranhão para que seus ventiladores mecânicos não fossem tomados pelos Estados Unidos ou pelo governo federal virou alvo da Receita Federal, numa ação mais política do que econômica, já que os ventiladores têm alíquota zero de importação, logo sem nenhuma sonegação.

6. Falta combinar com o vírus. Um dos componentes da tentativa de reação política de Bolsonaro nos últimos dias está relacionado, é claro, com a negação do tamanho do estrago causado pelo coronavírus. Nesta tarefa, conta com antigos aliados, como os milicianos do Rio de Janeiro, que pressionam comunidades pela reabertura do comércio a fim de retomar o recolhimento de taxas, e também com seus amigos mais novos, como os âncoras de emissoras alinhadas como Roberto Cabrini, do SBT, capaz de tirar dados da cartola sobre a capacidade de resposta brasileira à pandemia, e José Luiz Datena, da Band, um dos palcos prioritários de Bolsonaro para disparar informações falsas sobre a situação e queimar o seu antigo ministro, Luiz Henrique Mandetta. Até mesmo os grandes jornais embarcaram em certo otimismo com o pacote econômico anunciado e deram menos atenção ao coronavírus nesta semana, talvez atendendo ao apelo do ministro da Secretaria de Governo por notícias mais positivas. As redes sociais voltaram a ser hegemonizadas pelos robôs bolsonaristas criticando governadores que ainda mantêm uma postura mais séria diante da crise, dando foco exagerado sobre o número de pacientes recuperados e atacando o que eles vêm chamando de “torcedores do vírus”, de forma a criar uma situação inusitada que só o cinismo bolsonarista é capaz: de acordo com essa visão alucinada, a oposição em geral estaria torcendo pela tragédia, a fim de prejudicar o mito. Bolsonaro e seus apoiadores jogam com a subnotificação da doença e esperam que o Brasil não saiba a real dimensão desta tragédia, mas resta saber até quando será possível sustentar a estratégia negacionista. As tristes imagens das valas coletivas começam a se tornar comuns, o vírus avança sobre as periferias, se instala no sistema carcerário e bate recordes diários no número de vítimas fatais. Ainda que os 407 óbitos registrados na quinta-feira (23) sejam, em parte, em função das ocorrências do feriado de Tiradentes que ainda não haviam sido registradas, soa como loucura vermos as pessoas voltando aos shoppings ao som de saxofone justo num momento em que a nossa curva pega um fôlego para subir. O problema é que em todo o mundo a realidade tem sido implacável e no Brasil, infelizmente, não deve ser muito diferente: nesta semana, um dos âncoras de televisão alinhados ao bolsonarismo teve de ser afastado de seu programa popular, onde fazia coro ao negacionismo, por suspeita de estar com Covid-19. O Brasil teve tempo para se preparar para a chegada do coronavírus e os governadores até agiram cedo, mas o relaxamento do distanciamento social por pressão econômica, aliado à ignorância orgulhosa dos bolsonaristas, faz com que as próximas semanas sejam de muita expectativa sobre o que nos espera. O epidemiologista Pedro Hallal, reitor da UFPel, resume o risco: “Em epidemias, é muito comum que, quando se está ganhando, começa-se a achar que a situação não é tão grave assim. Aí muda-se de postura e se começa a perder a batalha”.

7. Ponto Final: nossas indicações de leitura para o fim de semana

A ofensiva de Bolsonaro. Há um novo espectro político rondando o núcleo central do poder brasileiro, resta saber o quanto ele se efetivará e quais serão os impactos na conjuntura atual, escrevem Antonio Carlos Carvalho e Matheus Tancredo Toledo no site da Fundação Perseu Abramo.

No longo prazo, isolamento afeta menos o PIB. A contenção gera um custo social menor a curto prazo, comprovam economistas no Valor.

Drauzio Varella prevê 'tragédia nacional' por coronavírus: 'Brasil vai pagar o preço da desigualdade'. De acordo com o médico, em entrevista à BBC Brasil, é a primeira vez que vamos ter a epidemia se disseminando em larga escala em um país de dimensões continentais e com tanta desigualdade.

O Brasil com baixa imunidade – Balanço do Orçamento Geral da União 2019. Estudo do Inesc analisa os gastos orçamentários da União no ano passado e mostra como as medidas de austeridade fiscal e o teto de gastos, reduziram as políticas sociais necessárias para proteger a população mais vulnerável da atual pandemia do novo coronavírus.

Pedalada monetária. Como emitir moeda sem provocar inflação.  Artigo de Ivanir José Bortot no Divergentes explica como funcionaria a proposta de Henrique Meirelles e Bresser Pereira de “imprimir dinheiro novo” para retomar a economia sem inflação.

Prefeitos erram ao interpretar decretos como sinal para abrir tudo rapidamente, alerta reitor da UFPel. O Sul21 entrevista o reitor da Ufpel, Pedro Hallal, universidade pioneira nos estudos sobre a propagação do novo coronavírus, que demonstra que o número de casos é certamente muito maior do que o divulgado.

Lado B do RJ Notícias #14. O Podcast Lado B aborda os desmandos perigosos de Ricardo Salles, Jair Bolsonaro e Mourão no Meio Ambiente além de explicar o que é o Conar e por que esse órgão virou alvo de tweets presidenciais.

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Ponto é uma newsletter semanal do Brasil de Fato editada por Daniel Cassol e Miguel Enrique Stédile. Envie seu comentário, crítica ou sugestão para o e-mail:  [email protected]

Edição: Vivian Fernandes