Coluna

Profissionais da saúde movem um mundo mutilado

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Coney Island, 2016 - Luc Kordas
É a crença na ciência e na solidariedade que move médicos chineses e cubanos a ajudar outros países

O SARS-Co-2 ou covid-19 vem se movendo rapidamente pelo planeta. Nenhuma região está intocada. É um vírus poderoso, com um período de incubação longo o suficiente para ocultar os sintomas e, portanto, alcançar mais e mais pessoas com seus braços mortais.

Lentamente, o mundo vai parando e o medo toma conta, ainda que ele não seja uma opção. O vírus é mortal, mas não é apenas ele que gera medo. Grande parte do mundo teme porque está percebendo que vivemos em desertos institucionais, que nossos líderes eleitos são em sua maioria incompetentes e que a sede pelo lucro concentrou muito do potencial humano no dinheiro e não no desenvolvimento da humanidade.

A profunda solidão que caiu como uma mortalha no mundo advém dessa percepção e do isolamento social imposto. A maioria dos chefes de governo do mundo aposta no medo para confundir suas populações; eles prosperam no pânico, de um tipo ou de outro. Eles simplesmente não têm a fibra moral para nos guiar enquanto essa pandemia atinge em cheio nossas vidas.


Counting Blessings, 2019. / Haris Nukem

Em um meio improvável – o Financial Times -, o editor de África, David Pilling, escreve sobre a catástrofe ocasionada pela mudança da saúde pública para a saúde privada. Existe, diz ele, “a tentação de ver a saúde através de um olhar individual”, pois doenças não transmissíveis como câncer, hipertensão e diabetes eclipsam outras enfermidades; o antídoto para essas doenças é visto como individual (um regime alimentar, exercícios físicos) e privado (plano de saúde).

À medida que as faculdades de Medicina, hospitais e empresas farmacêuticas privadas crescem, o sistema público murcha. Esse desenvolvimento, observa Pilling, “ignora dois fatos. Um é que as intervenções de saúde mais eficazes, de água potável a antibióticos, passando por vacinas, são todas coletivas. A segunda é que as doenças infecciosas não foram derrotadas. Elas foram, na melhor das hipóteses, mantidas à distância”.

Não há alternativa, o que se comprova à medida que essa catástrofe se desenrola, senão a criação de, no mínimo, um robusto setor público para a saúde.

Mesmo nos sistemas de saúde mais precários, desmontados pela austeridade, são os enfermeiros e médicos, os paramédicos das ambulâncias e os cuidadores que têm sido heroicos em seu trabalho; médicos e enfermeiros estão sendo chamados de volta da aposentadoria, trabalhando agora muitas horas sem tempo para descansar.

Estão trabalhando além da exaustão para engrossar os esforços contra o vírus. Nesse mundo mutilado, aqueles que nos mantêm unidos pelos laços de amor e companheirismo são nossos heróis, pessoas maravilhosas que estão dispostas a se colocar em perigo para proteger seus semelhantes.

Os cuidadores – seja em famílias ou em instituições – nunca recebem crédito suficiente pelo enorme fardo que carregam, enquanto políticos extirpam o Estado e a sociedade. Eu preferiria um planeta de enfermeiras a um planeta de banqueiros.
Things Fall Apart, 1976. / Thami Mnyele

As notícias da Itália são estarrecedoras, e um prelúdio do que pode acontecer se o vírus entrar completamente nas favelas e bastis pelo mundo. Pouco se sabe que a gripe espanhola de 1918-1919 teve seu pior impacto no oeste da Índia; dos milhões que morreram nessa pandemia, 60% eram desta parte do país e os que morreram já estavam enfraquecidos pela desnutrição imposta pela política colonial britânica.

Hoje, os famintos vivem nesses cinturões de favelas que até agora não foram dramaticamente atingidos pelo vírus. Se a morte começar a assolar essas áreas, onde os cuidados médicos foram severamente esgotados, o número daqueles que morrerão será alarmante, a miséria da estrutura de classes ficará evidente nos necrotérios.

A poeta Margaret Randall, cujas memórias I Never Left Home [Nunca Saí de Casa, tradução livre] acaba de ser publicada, nos enviou um poema que define o clima para esse período:

COVID-19
Quando o número de mortos esperado
está na casa dos milhões
há chances de que
alguém que você ama mo
rra.

As pragas do passado nos revisitam agora
e nós lutamos
para ficarmos seguros, ficarmos
sãos e presentes para os outros,

ajude os vizinhos, compre apenas
o que precisa,
das prateleiras das lojas que esvaziam
na batida do medo.

Vamos doar máscaras
como os chineses
e lavar nossas mãos
em oração silenciosa.

Vamos cantar nas varandas
imaginárias e reais
como os italianos
confinados em todo o país.

Sejamos gentis um com os outros
vamos organizar os remédios
e as soluções
que líderes irresponsáveis colocam em risco.

Se este é o Big One,
vamos sair
com dignidade, se é um ensaio
vamos finalmente propor viver em paz.


Médicos chineses nas montanhas Altai / Tricontinental

Durante séculos, os seres humanos enfrentaram grande tristeza, pouco entendendo a morte cataclísmica, sendo pragas e a cólera as mais notáveis. Quando as catástrofes acontecem, muitas vezes são as mulheres – como enfermeiras, mães e irmãs – que mantêm a sociedade unida.

Explicações misteriosas e místicas abundam. A ciência nos ajudou a romper o profundo fatalismo que enganou as pessoas; agora buscamos explicações no sequenciamento de genes e na criação de vacinas.

É a crença na razão, na ciência e na solidariedade que enviou médicos e enfermeiros chineses para os confins de seu país, como as Montanhas Altai, para curar pessoas e conter esse vírus muito perigoso que nos envolve em ansiedade e morte; foram esses valores que os levaram, juntamente com os médicos cubanos, ao Irã, Iraque e Itália para ajudar países em perigo.

A chegada deles nos lembra uma história de um século de médicos e enfermeiros socialistas que se lançaram à solidariedade internacional pelo bem da humanidade. São pessoas que compartilham um cenário ético com os médicos comunistas indianos e a policlínica de seu povo sobre a qual escrevemos no Dossiê n. 25 (fevereiro de 2020). Essa é a tradição socialista.


Sanções são criminosas, Caracas, Venezuela, 2020 / Tricontinental

E depois há a tradição imperialista. À medida que o covid-19 se espalha, e como o Irã foi atingido com força, uma resposta humanitária dos Estados Unidos teria sido pôr fim a todas as sanções assassinas e permitir que o Irã importasse equipamentos e suprimentos médicos.

O mesmo se aplica à Venezuela, onde o covid-19 já começou sua marcha. Eu e Paola Estrada, da Assembleia  Internacional dos Povos (AIP), conversamos com o ministro das Relações Exteriores da Venezuela, Jorge Arreaza, que nos disse que seu país está enfrentando “dificuldades para a aquisição oportuna de medicamentos”.

Mas a Venezuela, como o Irã, tem sido assistida pelos chineses, cubanos e pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Eles estão decididos a quebrar o embargo do imperialismo e a cadeia de transmissão viral. “Sanções são um crime”, dizem na Venezuela. As sanções unilaterais dos EUA assumem um significado criminal especial em meio a essa pandemia.

 

 

Edição: Leandro Melito