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Coluna

O claro-escuro em que vivemos

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Guernica, de Pablo Picasso, obra de 1937 - Divulgação
“O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”.

“O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”. O postulado de Antonio Gramsci, uma das referências do pensamento de esquerda, é contundente pela capacidade cirúrgica de sintetizar o momento pelo qual passa a humanidade.

A hegemonia neoliberal do século XXI parece ter devolvido o mundo capitalista aos seus primórdios no século XVIII e XIX. A tendência estrutural ao monopólio e à hiperconcentração de capital levou as frações dirigentes da burguesia a uma associação inevitável com os setores mais anti-humanistas, neofascistas e autoritários do próprio capitalismo e de suas elites políticas. As políticas desta fração dirigente arrastaram o mundo a uma prolongada crise da economia, iniciada em 2007/08, impondo uma corrosão acelerada da indústria e um declínio enorme do emprego regulado e protegido. Somente os grandes proprietários de capital lucraram neste período. As falências e o desemprego atestam a dinâmica de hiperconcentração de riqueza em todo o globo.

Este bloco hegemônico, ultradireita/neoliberalismo, fez por desnudar qualquer falácia de que o capitalismo e o “mercado” defendem o Estado mínimo. Pelo contrário, o desenvolvimento capitalista necessita do Estado provedor e interventor, assim como os seres humanos necessitam do ar e o deserto necessita da chuva. A ampliação do controle dos Estados, portanto, foi necessária para robustecer a capacidade de concentração de riqueza e capital no mundo inteiro. Através dos mecanismos de hegemonia, grandes parcelas dos trabalhadores, da juventude, dos aposentados e, até dos pequenos capitalistas, foram induzidos ou mesmo convencidos de que o Estado atrapalha a economia e a sociedade e deveria ser reduzido à ineficiência e à incapacidade, através das privatizações e da redução drástica em investimentos sociais redistributivos. Como na destruição dos sistemas públicos de saúde, de seguridade social, de educação e de proteção ao emprego e remuneração do trabalho, como a reforma trabalhista ocorrida no Brasil e em vários países. Essas pessoas foram brutalmente e dramaticamente enganadas.

As pandemias mundiais de viroses e pestes, como o H1N1 e o Coronavírus, estão a testemunhar esse engodo global. Obviamente estas pandemias estão relacionados à decadência ou inexistência de sistemas universais de saúde pública, à manutenção da precariedade no saneamento e à redução dos salários e ganhos da população de baixa renda. Estão, portanto, relacionadas às políticas de Estado implementadas por esse bloco ultradireita/neoliberalismo.

A situação está se adaptando ao que Gramsci descreveu como “claro-escuro”, o hiato entre o velho e o novo mundo onde emergem e proliferam os monstros, porque a radicalização deste modelo econômico ultraconcentrador exige medidas de esbulho dos mais pobres, o que gera um aumento da instabilidade política a partir da resistência das vítimas do modelo. A resposta dada por esse bloco hegemônico não é um “afrouxamento” dessa concentração de riqueza através de medidas mitigadoras ou compensatórias. Ao contrário, a resposta é a associação orgânica desta fração dirigente da burguesia rentista com o autoritarismo, através de governos, partidos e frentes neofascistas que vão implementando as medidas de transferência de renda, como as reformas trabalhista e previdenciária, alinhadas com a sustentação política dada pelos aparelhos de hegemonia, como os meios de comunicação, igrejas fundamentalistas e maiorias parlamentares.

No Brasil, o bloco que controla o governo Bolsonaro, constituído pela nova direita e pelos neoliberais, impõe as mesmas medidas. O resultado, portanto, não poderia ser distinto. O Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, uma forma largamente aceita pelos analistas de mercado e economistas para medir o tamanho e o desempenho das economias nacionais, está estagnado há 3 anos. A “fuga de capitais” é crescente em uma vazão cada vez maior e mais fluida, levando a uma forte retração dos mercados financeiros e queda das bolsas de valores. A queda da Bolsa de Valores de São Paulo, de 25,9% entre os dias 9 a 13 de março, foi muito maior do que a da Bolsa de Valores de Nova York, de 16,5% no mesmo período. Se em 2013 a taxa de investimento da economia brasileira era de 20,9%, na atualidade está em 15, 4%.

De fato, as medidas implementadas pelo bloco no poder durante o governo Temer, e agora aprofundadas no governo Bolsonaro, serviram para enriquecer ainda mais os “super-ricos”, ao passo que joga a economia brasileira na insolvência. Se a distribuição de renda, o pleno emprego e as taxas ascendentes de investimento vividas durante o período dos governos Lula e Dilma foram decisivas para amenizar os efeitos da crise internacional em seus primeiros anos, as medidas combinadas dos governos Temer e Bolsonaro destruíram esta capacidade de resistência e proteção da economia brasileira.

O aspecto político da pandemia do Coronavírus será o de se tornar uma figuração material desta realidade. Os brasileiros estão menos protegidos de quaisquer epidemias hoje do que estavam há uma década atrás, em função da queda abrupta e vertical dos investimentos no Sistema Único de Saúde. O mercado capitalista da saúde não terá capacidade de proteger os brasileiros. Assim é também na economia, os brasileiros estão desprotegidos desta aguda crise econômica mundial.

O governo Bolsonaro ingressa em um período de crise de legitimidade. Sua relação com a maioria do Congresso Nacional é instável, já tendo sofrido derrotas em projetos estruturantes para sua política econômica. Mesmo sua relação com o grande capital é menos sólida do que no início de seu governo, haja vista a evasão de investimentos. Contudo, isto não significa que Bolsonaro esteja à beira do desmoronamento. Sua estratégia política está assentada em três grandes movimentos: uma aproximação cada vez mais subordinada ao governo estadunidense de Donald Trump; uma ampliação do poder dos setores militares de ultradireita expressos no núcleo de generais palacianos; e um apelo mobilizatório cada vez maior à sua base social orgânica de direita.

A crescente perda de legitimidade do governo Bolsonaro pode levá-lo à tentativas cada vez mais radicalizadas para evitar sua queda. A opção tomada pelo governo de adotar o Estado de Calamidade contribui para criar as condições políticas e sociais para, na sequência da crise, eventual adoção de novas medidas de exceção. O sistema de saúde tem as condições necessárias para enfrentar a pandemia, uma vez que sejam restaurados os investimento subtraídos por Temer e pelo próprio Bolsonaro e abdicando da política de austeridade, dispensando o Estado de Calamidade. Como o Cavalo de Troia, esta medida poderá transformar-se em arapuca, urdida pelos setores autoritários.

O grande risco não está, em si, na adoção do Estado de Calamidade mas nas condições políticas que este estado abre para lançar mão, de forma combinada e na sequência, dos estados de exceção que venham a reduzir fundamentos e prerrogativas da vida democrática, como o adiamento das eleições de outubro e o direito de manifestação, sob a justificativa de controle da ordem e contenção da pandemia. Este instrumento, nos dias 17 e 18 de março exatamente quando começaram a eclodir pelo país manifestações espontâneas pedindo a renúncia de Bolsonaro e a aumentar a instabilidade do regime político no Brasil, tenderá a ampliar a tensão e a sensação de anomia e desordem, buscando avançar sobre a verdadeira situação de exceção que vive o país desde o impeachment de Dilma Rousseff.

O quadro pode evoluir para uma situação de anomia, uma vez que o governo começa a se isolar de relevantes frações do bloco no poder, como o empresariado financeiro e setores médios do campo conservador, na mesma cadência que “milicianiza” suas relações de sustentação, baseadas no choque e na disposição de utilizar qualquer método. O governo Bolsonaro poderá neste quadro, combinar o aprofundamento das reformas privatizantes para manter o apoio do “mercado’ e ampliar a ofensiva e contra a oposição e a resistência.

A convergência entre a pandemia do Coronavírus, a crise econômica ascendente e a deslegitimação política crescente do governo Bolsonaro pode resultar em uma situação de crise de legitimidade do próprio regime e sistema político brasileiro, abrindo várias hipóteses de desdobramentos políticos, incluindo uma situação autoritária ou semi autoritária.

Ao invés de medidas de proteção social, o que incluiria medidas de proteção da economia local e nacional, o governo Bolsonaro apresenta um plano de pura rapina (medidas anunciadas dias 16 e 18 de março de 2020). Em um senso de oportunidade baseado no mais vil interesse de exploração e lucro com a crise, o Ministro da Economia anuncia um plano de venda da Eletrobrás e de privatização do saneamento e fala da “retomada das reformas estruturantes”. No plano orçamentário, propõe a antecipação e não o aumento dos gastos sociais previstos no Orçamento Geral da União de 2020, achatados pela política de austeridade materializada no “teto dos gastos”.

Governos austericidas, porém centrais, como a França estão buscando medidas, ao menos paliativas, como a isenção de taxas e preços públicos. O Brasil está na contramão, até mesmo, do mundo capitalista democrático. As medidas deveriam passar por ampliação dos investimentos sociais e proteção do emprego e da renda. Fundamental seria intervir no sistema financeiro, derrubando as taxas de serviço e suspendendo as execuções de dívidas. Ampliar as linhas de crédito através do BNDES e expandir o bolsa família sem falar, é claro, em acréscimos reais de recursos para o SUS.

Os grandes rentistas querem manter suas taxas de lucro e seus governos títeres como Bolsonaro farão o serviço de proteger os lucros e o capital destes setores. O que somente pode ser efetivado com apoio do oligopólio privado da mídia que tenta apresentar a “estabilidade das bolsas de valores e proteção aos investimentos” como soluções para o conjunto da população. Não é.

Na dimensão estrutural, a grande questão que emerge é: Está o capitalismo em uma crise terminal ou em um fim de ciclo crítico? Ou ainda, se ambas convergem e interagem, criando as condições suficientes e necessárias para um novo modo de produção na economia? Já na dimensão conjuntural, é procurar saber se há uma crise de estabilidade e legitimidade do bloco no poder e qual será seu substituto.

Não há resposta conclusiva possível a estas questões enquanto vivermos a própria crise, mas é necessário nos movermos de forma ativa para evitar que sua consequência seja um cataclismo social, econômico, democrático e ambiental. É hora portando do ativismo em defesa de um modelo alternativo de economia e de recuperação de direitos fundamentais, de defesa de valores igualitaristas e das prerrogativas democráticas, de construção de um novo Estado social em superação ao Estado neoliberal.

É hora da unidade de ação entre as várias formações de esquerda, institucionais ou não. Trata-se também de defender bases mínimas de um Estado democrático que permitam aos setores populares condições de engendrarem um programa e uma tática política de mudanças e reformas antes que o mal se aprofunde. O adversário não é só o governo Bolsonaro, mas o bloco no poder que o sustenta e sua histórica disposição de lançar mão de qualquer meio para proteger o poder e os lucros.

 

Edição: Katia Marko