Coluna

A derrota da soberania econômica

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“Desobrigar, desindexar e desvincular” foram as palavras do ministro da Economia sobre o pacto federativo - Wilson Dias / Abr
Desvinculação significa desobrigar o investimento em saúde, educação e ciência e tecnologia

Por Martonio Mont’Alverne Barreto Lima*

Nenhuma experiência do capitalismo desenvolvido moderno prescindiu do mercado interno e da defesa de suas ciência e tecnologia. A corrida pelo domínio da energia nuclear até a eclosão e após a II Guerra Mundial é somente um bom exemplo.

Já devidamente unificada desde 1871, a Alemanha adquiriu proeminência científica, cultural e tecnológica que fez recompensar suas vantagens do atraso em relação ao seu ingresso no capitalismo industrial.

Os Estados Unidos não descuidaram de tais aspectos, assim como o Japão e, no período entre as duas guerras, exibiram ao mundo todo seu poder econômico e bélico, bem representados por suas forças navais e terrestres.

O que ocorre no Brasil atualmente é o contrário da advertência que a história ensina. Para além da indigência científica do presidente e de seus auxiliares, não surpreende o fato de eles contarem até aqui com apoio da subalterna elite econômica brasileira, incapaz de formular uma estratégia nacional de desenvolvimento permanente.

Esta formulação requer atitude no sentido de se desenvolver, além de pressupor a coragem de criar e fortalecer sua soberania econômica. Tal exigência ultrapassa a noção de defesa das fronteiras apenas como a luta contra traficantes.

Significa compreender que a defesa da empresa e tecnologia nacionais requer o investimento na ciência de todas as áreas. O que nos chama atenção é que já vivemos este período.

A presença do Almirante Álvaro Alberto da Motta Silva fez com que o Brasil começasse o programa nuclear brasileiro, com o objetivo do domínio da tecnologia do ciclo completo de enriquecimento de urânio.

Engenheiro, professor de química e físico nuclear, foi idealizador e primeiro presidente do Conselho Nacional de Pesquisas, o CNPq e presidente da Academia Brasileira de Ciências. Incluiu o estudo da física nuclear no currículo da Escola Naval já em 1939.

Tinha em mente a criação de uma instituição governamental, cuja principal função seria incrementar, amparar e coordenar a pesquisa científica nacional, o que veio a ocorrer com a Lei nº 1.310, de 15 de janeiro de 1951, que criou o CNPq, além de proibir a exportação de urânio e tório sem autorização do governo.

Nomeado representante brasileiro de 1946 na Comissão de Energia Atômica do Conselho de Segurança da recém-criada Organização das Nações Unidas, associou-se aos representantes russos na rejeição às propostas no Plano Baruch.

Este plano previa a internacionalização das reservas minerais de urânio e tório “para corrigir as injustiças da natureza”, de acordo com os norte-americanos. Álvaro Alberto propôs, do mesmo modo, a internacionalização das reservas de petróleo e carvão.

Gordon Dean, presidente da Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos, ante esta posição brasileira, afirmou a necessidade de se compreender “ (...) o senso de propriedade muito agudo de países como a Índia, a Austrália e o Brasil, aos quais repugna se desfazer de seus recursos naturais que podem lhe permitir um dia produzir energia a baixo custo”.

Neste começo de 2020, estivemos envolvidos em discussões sobre um plágio da propaganda nazista na Alemanha e sobre abstinência sexual como política de saúde. Tais fatos apenas confirmam a característica política real do governo. É assunto para outra conversa. A exoneração do plagiador de J. Goebbels não muda quem realmente são e como pensam os ocupantes atuais do governo brasileiro.

Enquanto isso, a Embraer era vendida, a PEC do Pacto Federativo debatida, e mais recentemente abriu-se a discussão sobre a reforma administrativa. “Desobrigar, desindexar e desvincular” foram as palavras do ministro da Economia sobre o pacto federativo.

A desvinculação significa desobrigar o investimento em saúde, educação e ciência e tecnologia que a Constituição prevê. De modo mais claro: significa enterrar a possibilidade de desenvolvermos de forma autônoma nosso modelo econômico; é a renúncia à nossa soberania econômica.

Em meio a este cenário, surpreende a inércia de setores políticos brasileiros ante tal quadro anunciador do enfraquecimento da tecnologia nacional e de sua soberania.

O empresariado e todos os ramos econômicos apoiadores do atual presidente e de seu governo parecem ignorar o preço que, novamente, a história econômica mostra: o atraso do país que é também o atraso de seus investimentos.

Despedir-se da autonomia científica nacional corresponde à despedida de soberania. Sem governos com capacidade de defender a empresa nacional da bruta concorrência internacional, a mesma elite econômica que abdica de seu protagonismo interno sucumbirá diante de quem tem, ao lado de seus interesses, uma estrutura de Estado capaz de organizar a defesa dos interesses econômicos.

É erro terrível apoiar posições econômicas como se estas não se vinculassem às questões da democracia e do fortalecimento da República. Deixar que se faça pilhéria da inteligência nacional, das universidades que produzem ciência e tecnologia, e pensar que a economia vai bem com subempregos, com largos contingentes na linha da miséria e sem chances de ascender socialmente equivale a criar as bases do fim de uma nação, em todos os sentidos. É o que mostra a história, por mais que alguns insistam que esta chegou ao fim.

* Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é professor titular da Universidade de Fortaleza, procurador do município de Fortaleza (CE) e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

Edição: Leandro Melito